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Minha história - Edson Tavares

Meu pior emprego

(...)Ex-técnico da seleção de futebol do Haiti, brasileiro abandona equipe caribenha em meio às eliminatórias para a Copa e relata vontade de esquecer passagem pelo país, onde pegou malária e afirma ter sido roubado e ameaçado

MARCEL MERGUIZO
DE SÃO PAULO

RESUMO

O carioca Edson Tavares, 55, foi técnico de clubes prioritariamente da Ásia e teve passagens pelas seleções da Jordânia e do Vietnã. Em 2010, foi convidado a ser técnico da seleção do Haiti graças à atuação da Viva Rio no país e à ligação da ONG com a federação local. O Haiti é o 80ª colocado do ranking da Fifa e foi eliminado na segunda fase das eliminatórias da América do Norte, Central e Caribe para a Copa-14.

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A gente se doa demais para um clube, uma nação, mas não tem contrapartida. Não querem saber de você, querem resultado. Que se dane o resto. Assim é o futebol.

Fui chamado para trabalhar no Haiti entre março e abril de 2010. Mas tinha contrato nos Emirados Árabes Unidos e fiquei esperando a confirmação, que veio em junho. Fiquei em julho no Al Wasl, atual time do Maradona. Voltei ao Brasil em agosto e começamos a trabalhar. Pedi demissão em dezembro.

Minha base não era Porto Príncipe (capital do país), não teria como ser. O máximo que fiquei lá foram 45 dias seguidos, justamente na vez em que tive malária. Então você já viu que ficar mais de um mês lá era complicado.

O meu salário era pago parte pela ONG Viva Rio e parte pela Federação (Haitiana de Futebol), e eles ainda estão me devendo alguns meses.

A federação atrasou em alguns momentos e não me pagou em outros. A Viva Rio não me falou nada. Isso é muito desagradável, porque não sou rico. Se eu fosse rico, não ia para o Haiti. Preciso correr atrás. E não sei cobrar.

O que foi creditado na minha conta foi roubado. Não sei o que aconteceu. Marquei bobeira, sabe? Na realidade, só abri conta no banco (Unibank) para não ficar andando com dinheiro. Mas não devia ter aberto conta em banco. Meu segurança ficou andando comigo quase dois anos, conhecia todo mundo, tinha até mais amizade no banco do que eu. Quando me demiti e voltei ao Brasil, acho que ele foi direto ao banco e limpou. Sim, o segurança.

Não sei quem foi, mas ele é o único que tinha acesso. Ou o gerente do banco. Mas lá é normal. Não tem outra maneira de se viver. É um círculo vicioso de roubar e não fazer nada. Faz parte da cultura, em grandes dimensões.

CAMPANHA

Fiz 11 jogos pela seleção, empatamos um e perdemos um. Em 11, ganhamos nove e só recebi prêmio de um. Não me pagaram. Quando me pagavam, me roubavam. O assessor do presidente da República vinha com aquele monte de gourdes (cada real vale 23 gourdes, a moeda do Haiti) e dizia "conta aí". Mil dólares é um caminhão de dinheiro lá. Como eu ia contar aquela nota suja, suada, asquerosa? Quando chegava no banco, por exemplo, eu tinha que receber US$ 5.000 e me davam US$ 800, US$ 900.

Aí você vai falar de resultado? Eles têm que ficar com eles mesmos lá. Não merecem. Não podem ter treinador estrangeiro. Não pode, não pode, não pode mesmo. O próprio presidente chegou a essa constatação agora, colocando meu auxiliar (Carlo Marcelin) no meu lugar.

O último jogo das eliminatórias eu não fiz. Voltei no meio do caminho. Tá besta? Vida lá não vale nada. Para quem perdeu um milhão [ de pessoas] no terremoto [mais de 300 mil], mais 250 mil com cólera [mais de 6.000], para matar bastam US$ 10.

Estávamos desclassificados, não havia necessidade de colocar em risco a minha vida. No jogo em Antígua e Barbuda perdemos com um frangaço do nosso goleiro. Ninguém matou o goleiro que aceitou uma bola de 30 metros, mas treinador eles matariam. Sofri ameaça por escrito. E já vinha acontecendo, dos que queriam meu lugar.

PERTO DA MORTE

No ano passado, eu também tive malária. Tive a falciparum, que é o tipo que mais mata. Quase morri. Foi em fevereiro, quando estava com a seleção sub-17, na Jamaica.

Foi uma confusão, governo haitiano contra governo jamaicano. Quatro jogadores e eu caímos doentes. Eu não conseguia andar, as pernas tremiam, não comia nada. Disseram que eu estava com cólera. Me deram remédio para cólera, que estava na moda, e quase morri. A polícia me isolou em um lugar de semimortos. Falei que não iria ficar ali. Voltei para o hotel, me escondi. Mas descobriram e isolaram o time. Foi quando o governo decidiu expulsar a gente, na cara do Jack Warner (ex-vice-presidente da Fifa). E ele apoiando os caras. Jogamos só um jogo lá.

Cheguei na cadeira de rodas no Haiti. Não tinha hospital. O Exército brasileiro foi me apanhar. Entraram em contato com as tropas da ONU para me enviar para o hospital de campanha da Argentina, o embaixador do Brasil [Igor Kipman] pediu e conseguiu. Foi ali que o milagre aconteceu. Cheguei lá morto e Deus me deu uma nova chance. Perdi 18 kg, dos quais só recuperei dez.

Agora, vão precisar de dinheiro para as convocações. Quando você convoca tem que pagar diária, alimentação, estadia, tudo. Cada convocação gasta US$ 80 mil (cerca de R$ 135 mil). Se for fora do país, US$ 150 mil. É caro. A própria federação precisa pagar, e aí é que está o problema. Deveriam ter dinheiro de patrocinador, marketing, mas não têm.

As convocações eram feitas nos EUA. No ano passado, jogamos amistosos em New Hampshire e Boston. Dois jogadores desertaram no primeiro, e dois, no segundo. Um outro ficou no aeroporto em Miami. E estavam felizes porque o número de desertores diminuiu. Antes, contam que iam 25 e voltavam cinco.

Há três seleções haitianas morando nos EUA. Estão perdidos, um é mecânico, o outro é sorveteiro. E eles vão voltar para aquela desgraça?

Mas não me arrependo de ter ido para lá. Vivi um sonho, não deu certo. Você vive o sonho, vai à luta. Sacrifiquei tudo por causa do sonho e não deu certo. Gostaria muito de estar na Copa do Mundo do Brasil com uma equipe. O sonho era classificar o Haiti para 2014, e um pouquinho mais a gente chegava.

ADOTADOS

Se tivéssemos feito um amistoso a cada dois meses, a equipe estava montada. Mas jogamos sem ninguém se conhecer. Um não falava a língua do outro. Os jogadores que foram adotados não falam nem crioulo nem francês. É um da Holanda, outro da Suíça, da Itália, Finlândia, Espanha. É na mímica.

A grande parte é de adotados. São uns dez na seleção. Vi 62 jogadores fora do país. Desses, uns 40 adotados. O Haiti adota muito, vende muita criança. O pessoal lá está morrendo de fome. Então as nações vão lá e pegam.

Na seleção, cinco ou seis jogam no Haiti. Um titular, o Charles Herold Jr, do Tempête FC. Ele tem carro, prestígio. Uns dois ou três no país têm esse status. O restante é miserável, anda de "tap-tap" (espécie de micro-ônibus).

A história é essa mesmo.Quero esquecer aquilo lá. Quanto mais rápido passar, mas rápido vou esquecer.

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