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Antonio Prata

antonioprata.folha@uol.com.br

Silêncio e fúria

Se em 1950 as vozes foram ceifadas pelo susto, ali eram contidas por vontade própria

Todo brasileiro traz consigo o trauma, vivido ou herdado, do silêncio de 1950, no Maracanã. Por conta dos textos de Nelson Rodrigues e dos relatos dos mais velhos, já me imaginei ali, mudo diante de Ghiggia, ao lado de outros 200 mil mudos, no que parecia ser a comprovação da inviabilidade nacional.

Já me vi caminhando pelas calçadas vazias do Rio, entre as mesas postas na rua; os banquetes abandonados sendo devorados apenas pelas pombas e vira-latas. (Nem os bêbados ou os mendigos dignaram-se a profanar aquelas ceias, talvez mais indigestas que a Última, pois já antecedidas pela crucificação.)

Silêncio no estádio era para mim, portanto, sinônimo de desgraça, e sempre torci para não passar por nada semelhante. No domingo, eu passei. Por intermináveis segundos me vi mudo, ao lado de 80 mil mudos -nossas razões, contudo, nada tinham a ver com a dos brasileiros no Maracanazo, 62 anos atrás.

É comum os locutores pedirem para as pessoas ficarem quietas quando o levantador de peso aproxima-se da barra, quando o saltador ajeita-se no trampolim, quando os arqueiros vão lançar suas flechas. É comum, também, não serem muito respeitados. Gritos de "Go, Egypt!", "USA! USA!" e "Vai, Curintcha!" -juro, e juro que não sou eu- invariavelmente espoucam da multidão. De modo que foi com profunda descrença que, 30 segundos antes do início da final masculina de 100 m, ouvi um educado "shhhhhhhhhh" saindo dos alto-falantes do estádio. Naquele momento, o público estava enlouquecido diante de Bolt, Blake, Powell, Gatlin e seus rivais, assim como o Coliseu devia ficar, ao surgirem os gladiadores e os leões. O sujeito realmente esperava que ficássemos quietos?

Para meu assombro, contudo, o silêncio aos poucos foi tomando conta do Estádio Olímpico. Houve alguns gritos recalcitrantes, um "Go, Jamaica!" e um "USA!" aqui e ali, mas, dez segundos depois do "shhhh" -um único "shhhh", diga-se de passagem- e já era possível botar uma criança para dormir no meio do gramado, sem que um pio viesse a perturbar seus sonhos.

Se em 1950 as vozes foram ceifadas pelo susto, ali estavam sendo contidas por vontade própria, num pacto subitamente selado, uma demonstração de respeito dos 80 mil nas arquibancadas pelos oito, na pista. Fechei os olhos, esperando o grito do espírito de porco sempre disposto a chutar o balde e comprovar nossos constantes temores de que a humanidade não presta e de que nada, nunca, pode dar certo, mas não: o silêncio perdurou, denso como o concreto que sustentava os 160 mil olhos mais curiosos e as 16 pernas mais velozes do mundo.

Então o tiro ecoou pelo estádio -e o resto é história.

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