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ATLETISMO
Andreas Krieger, que recebeu da extinta Alemanha Oriental pílulas que mudaram seu corpo, pede indenização
"Doping sexual" leva alemã(o) à Justiça
GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL
A pílula azul chegava sempre
embrulhada em papel laminado.
Não existia bula nem informações no pacote. Mesmo assim,
Andreas Krieger engoliu-a diariamente por 15 anos. Acreditava estar ingerindo uma vitamina.
O medicamento assegurou performances esportivas fabulosas e
seu status de ídolo na então Alemanha Oriental. Só que Krieger
não tem orgulho das conquistas.
Ao contrário. Aquelas pequenas
cápsulas castigaram seu corpo,
ajudaram a transfigurar seu sexo
e mudaram sua vida para sempre.
Quando atleta, o Andreas que
hoje faz a barba três vezes por semana atendia pelo nome de Heidi. Era uma jovem nascida na fatia
de Berlim dominada pelos comunistas. Seu sonho: disputar a prova de arremesso de peso em uma
edição dos Jogos Olímpicos.
As pílulas azuis que ingeriu não
continham simples vitaminas. Estavam, na verdade, recheadas
com esteróides anabólicos, substâncias derivadas do hormônio
masculino testosterona. No esporte, são utilizadas para aumentar força e potência dos músculos.
Em mulheres, os efeitos colaterais causam o que especialistas
chamam de "virilização" -a voz
engrossa, os pêlos crescem, a
agressividade decola. "Meu corpo
ficou tão estranho que não me reconhecia no espelho. Não tinha
vontade de ser mulher! Não sabia
mais o que era", disse Krieger à
Folha, por telefone.
Em 1997, seis anos após parar de
competir, conversou com um
médico e encontrou uma solução
para seus tormentos: fez uma cirurgia para trocar de sexo.
"A Heidi morreu. Sinto-me melhor assim. Só que os danos psicológicos permanecem", conta.
Hoje, aos 39 anos, Krieger vive
com uma mulher e sustenta a casa
comandando uma loja de roupas.
Nas horas vagas, ajuda um grupo de conterrâneos que, como ele,
se sentem vítimas e buscam reparações na Justiça por causa de
uma das feridas mais profundas
que o doping abriu no esporte.
A batalha jurídica na qual estão
mergulhados resgata um episódio
sem precedentes de financiamento estatal para o doping.
Entre 1972 e 1988, a Alemanha
Oriental conheceu um período
pródigo em medalhas olímpicas
-foi ao pódio 384 vezes, mesmo
boicotando Los Angeles-84.
Por trás dessa máquina de resultados, porém, existia a Jenapharm, estatal que obedecia aos
líderes comunistas e controlava a
indústria farmacêutica. Historiadores do país relatam que, por
ano, 2,5 milhões de cápsulas de
esteróides saiam da companhia,
hoje uma empresa privada.
"Quem direcionava os esteróides para os atletas eram seus treinadores ou alguns dirigentes. Eles
não eram produzidos com esse
fim. Por isso, a Jenapharm não
pode assumir responsabilidades
sobre esse caso", informa a empresa na nota que enviou à Folha.
A queda do Muro de Berlim em
1989 fez atletas da Alemanha
Oriental criarem coragem para
deslindar casos obscuros, que colocariam em xeque títulos obtidos
pelo país nas décadas de 70 e 80.
Ao menos 160 foram à Justiça de
1990 até hoje reverberando a mesma narrativa de Krieger: alegam
que pílulas de função desconhecida comprometeram seus corpos.
A solução para o mistério apareceu em 1993, quando ficou provado que o papel laminado abrigava o esteróide Oral-Turinabol.
A dosagem anual repassada aos
competidores era de 2.590 miligramas. "É uma quantidade exorbitante, que aumenta músculos
com a mesma velocidade que destrói o corpo", conta Francisco Radler de Aquino Neto, chefe do Ladetec, laboratório de controle de
dopagem sediado no Rio.
Não por acaso, Krieger sentiu
rápido os efeitos. Aos 18 anos, já
era a melhor do país e brilhava em
eventos internacionais no arremesso de peso. Em 1986, conquistou a medalha de ouro e bateu o
recorde continental no Campeonato Europeu de atletismo.
"Passava o dia repetindo movimentos e não sentia dor. A sensação agradava muito."
Mas não era natural. Antes de
disputar uma vaga nos Jogos de
Seul-88, já tinha lesões irreversíveis em tendões e ligamentos.
Não conseguia mais competir.
A tentativa de prosseguir na
modalidade até 1991 deixou seu
esqueleto totalmente alquebrado.
Nessa época, além de lidar com
dores crônicas, percebeu em situações corriqueiras que não poderia levar uma vida normal.
"Um dia, saí para ir à praia e me
dei conta que de como estava horrível ao colocar o biquíni. Tinha
músculos demais, pêlos no rosto e
no dorso das mãos. Eu tinha vergonha de sair na rua", conta.
Segundo Krieger, ninguém desconfiava das pílulas porque seu
uso era extremamente popular.
"Na década de 70, não se falava
em doping ou em esteróides. Só
passei por um teste em toda a minha carreira. Apesar de tomar esteróides diariamente, nada foi detectado. A tecnologia do doping
era muito superior à dos testes."
A transformação sexual trouxe
outro entrave para a vida do alemão. A cada sete dias, Krieger vai
ao consultório do médico para tomar uma injeção de testosterona.
"Quando eu não tomo a injeção,
minha voz afina e começo a ficar
irritado com qualquer coisa. Minha mulher [Ute Krause] não me
suporta nesses períodos", narra.
Para pagar esse tratamento e viver com mais conforto, promete
levar a ação indenizatória contra a
Alemanha até as últimas conseqüências. Mas sabe que dinheiro
nenhum apagará o que viveu.
"Não sou herói, não tenho orgulho de nada do que conquistei.
Queria ter uma chance de retornar no tempo. Queria ter perguntado ao meu treinador o que havia
naquela maldita pílula azul."
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