São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

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ATLETISMO

Andreas Krieger, que recebeu da extinta Alemanha Oriental pílulas que mudaram seu corpo, pede indenização

"Doping sexual" leva alemã(o) à Justiça

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

A pílula azul chegava sempre embrulhada em papel laminado.
Não existia bula nem informações no pacote. Mesmo assim, Andreas Krieger engoliu-a diariamente por 15 anos. Acreditava estar ingerindo uma vitamina.
O medicamento assegurou performances esportivas fabulosas e seu status de ídolo na então Alemanha Oriental. Só que Krieger não tem orgulho das conquistas.
Ao contrário. Aquelas pequenas cápsulas castigaram seu corpo, ajudaram a transfigurar seu sexo e mudaram sua vida para sempre.
Quando atleta, o Andreas que hoje faz a barba três vezes por semana atendia pelo nome de Heidi. Era uma jovem nascida na fatia de Berlim dominada pelos comunistas. Seu sonho: disputar a prova de arremesso de peso em uma edição dos Jogos Olímpicos.
As pílulas azuis que ingeriu não continham simples vitaminas. Estavam, na verdade, recheadas com esteróides anabólicos, substâncias derivadas do hormônio masculino testosterona. No esporte, são utilizadas para aumentar força e potência dos músculos.
Em mulheres, os efeitos colaterais causam o que especialistas chamam de "virilização" -a voz engrossa, os pêlos crescem, a agressividade decola. "Meu corpo ficou tão estranho que não me reconhecia no espelho. Não tinha vontade de ser mulher! Não sabia mais o que era", disse Krieger à Folha, por telefone.
Em 1997, seis anos após parar de competir, conversou com um médico e encontrou uma solução para seus tormentos: fez uma cirurgia para trocar de sexo.
"A Heidi morreu. Sinto-me melhor assim. Só que os danos psicológicos permanecem", conta.
Hoje, aos 39 anos, Krieger vive com uma mulher e sustenta a casa comandando uma loja de roupas.
Nas horas vagas, ajuda um grupo de conterrâneos que, como ele, se sentem vítimas e buscam reparações na Justiça por causa de uma das feridas mais profundas que o doping abriu no esporte.
A batalha jurídica na qual estão mergulhados resgata um episódio sem precedentes de financiamento estatal para o doping.
Entre 1972 e 1988, a Alemanha Oriental conheceu um período pródigo em medalhas olímpicas -foi ao pódio 384 vezes, mesmo boicotando Los Angeles-84.
Por trás dessa máquina de resultados, porém, existia a Jenapharm, estatal que obedecia aos líderes comunistas e controlava a indústria farmacêutica. Historiadores do país relatam que, por ano, 2,5 milhões de cápsulas de esteróides saiam da companhia, hoje uma empresa privada.
"Quem direcionava os esteróides para os atletas eram seus treinadores ou alguns dirigentes. Eles não eram produzidos com esse fim. Por isso, a Jenapharm não pode assumir responsabilidades sobre esse caso", informa a empresa na nota que enviou à Folha.
A queda do Muro de Berlim em 1989 fez atletas da Alemanha Oriental criarem coragem para deslindar casos obscuros, que colocariam em xeque títulos obtidos pelo país nas décadas de 70 e 80.
Ao menos 160 foram à Justiça de 1990 até hoje reverberando a mesma narrativa de Krieger: alegam que pílulas de função desconhecida comprometeram seus corpos.
A solução para o mistério apareceu em 1993, quando ficou provado que o papel laminado abrigava o esteróide Oral-Turinabol.
A dosagem anual repassada aos competidores era de 2.590 miligramas. "É uma quantidade exorbitante, que aumenta músculos com a mesma velocidade que destrói o corpo", conta Francisco Radler de Aquino Neto, chefe do Ladetec, laboratório de controle de dopagem sediado no Rio.
Não por acaso, Krieger sentiu rápido os efeitos. Aos 18 anos, já era a melhor do país e brilhava em eventos internacionais no arremesso de peso. Em 1986, conquistou a medalha de ouro e bateu o recorde continental no Campeonato Europeu de atletismo.
"Passava o dia repetindo movimentos e não sentia dor. A sensação agradava muito."
Mas não era natural. Antes de disputar uma vaga nos Jogos de Seul-88, já tinha lesões irreversíveis em tendões e ligamentos. Não conseguia mais competir.
A tentativa de prosseguir na modalidade até 1991 deixou seu esqueleto totalmente alquebrado.
Nessa época, além de lidar com dores crônicas, percebeu em situações corriqueiras que não poderia levar uma vida normal.
"Um dia, saí para ir à praia e me dei conta que de como estava horrível ao colocar o biquíni. Tinha músculos demais, pêlos no rosto e no dorso das mãos. Eu tinha vergonha de sair na rua", conta.
Segundo Krieger, ninguém desconfiava das pílulas porque seu uso era extremamente popular. "Na década de 70, não se falava em doping ou em esteróides. Só passei por um teste em toda a minha carreira. Apesar de tomar esteróides diariamente, nada foi detectado. A tecnologia do doping era muito superior à dos testes."
A transformação sexual trouxe outro entrave para a vida do alemão. A cada sete dias, Krieger vai ao consultório do médico para tomar uma injeção de testosterona.
"Quando eu não tomo a injeção, minha voz afina e começo a ficar irritado com qualquer coisa. Minha mulher [Ute Krause] não me suporta nesses períodos", narra.
Para pagar esse tratamento e viver com mais conforto, promete levar a ação indenizatória contra a Alemanha até as últimas conseqüências. Mas sabe que dinheiro nenhum apagará o que viveu.
"Não sou herói, não tenho orgulho de nada do que conquistei. Queria ter uma chance de retornar no tempo. Queria ter perguntado ao meu treinador o que havia naquela maldita pílula azul."


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