São Paulo, sábado, 01 de outubro de 2011

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JOSÉ ROBERTO TORERO

O ponta e o poeta


Há mais coisas em comum entre os pontas e os poetas do que sonha a nossa vã aposentadoria


Numa simpática praça de uma simpática cidade do interior, os dois sentam no mesmo banco. Depois de algum silêncio, o de cabelos brancos diz ao sem cabelo:
- Eu era ponta.
- Eu era poeta.
- Todo fim de semana esta cidade falava de mim. Das minhas jogadas, dos meus dribles...
- Eu era convidado de honra em todos os velórios. Iam me buscar em casa para discursar sobre o finado. Se juntassem todas as lágrimas que eu fiz derramar, dava um oceano.
- Também já fiz muita gente chorar. Os torcedores adversários. De raiva.
- Minha especialidade eram os versos alexandrinos. Sáficos ou heroicos. Dominava os dois.
- O que eu fazia melhor era cruzamento. De direita ou de canhota. Ah, que coisa linda... Todo mundo olhando para o céu, a bola descaindo de repente, na cabeça do centroavante. Já fiz a glória de muito cabeça de bagre que só tinha tamanho.
- No meu tempo não tinha esse negócio de verso branco.
- No meu, ala só existia em escola de samba.
- Era a estrela nos saraus. As donzelas suspiravam quando eu declamava.
- Nos bailes, a mão suada das moças...
- Eu recebia bilhetinhos.
- Até mulher casada me piscava o olho.
- O grande momento da noite era quando eu fazia umas quadrinhas de improviso.
O poeta fica de pé e declama: "Ficará em minha memória, esta noite quente e brumosa, não por riqueza ou glória, mas por tanta moça fremosa".
O ponta bate palmas. O poeta senta e lamenta:
- Fremosa nem está mais no dicionário...
O ponta faz embaixadas imaginárias.
- Pediam para fazer lelê com todo tipo de coisa. Tampinha de garrafa, rolha de champanhe, uma vez apareceu até uma dentadura.
O poeta ri, mostrando a sua. Depois conta:
- Cheguei a ganhar uma medalha do prefeito. Vinha escrito "Emérito cidadão".
- Também ganhei essa medalha. Foi depois da final do campeonato do Vale. Fiz um gol e dei passe para o terceiro. Pensei que era de ouro, mas quando fui empenhar...
- O mundo mudou. Hoje não tem mais poeta.
- Nem ponta.
Os dois ficam sentados por algum tempo em silêncio, até que um deles, o ponta sendo poeta ou poeta pensando como ponta, diz:
- Noventa minutos passam tão rápido que a gente nem percebe.


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