São Paulo, sexta-feira, 02 de abril de 2004

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Pódio é chance de mostrar "cara do Brasil", diz Daiane

Ginasta, que busca 1º ouro negro olímpico no feminino, diz que foi vítima de preconceito

SÉRGIO RANGEL
DA SUCURSAL DO RIO

Para Daiane dos Santos, 21, o Brasil é um país racista. Em entrevista concedida à Folha na noite de anteontem, a atleta gaúcha, que pode ser a primeira ginasta negra a ocupar o lugar mais alto do pódio olímpico, conta que já sofreu preconceito racial. Ela revelou o desejo de servir de exemplo para a sua raça.
Daiane não se enquadra no rótulo de atleta bem comportada. A ginasta, de apenas 1,44 m e 41 kg, diz que está de "saco cheio" do assédio dos jornalistas, admite ser "baladeira", namora um lutador de jiu-jitsu e adora dançar ao ritmo dos funks cariocas.
Depois de entrar para a história ao obter o primeiro ouro do país em Mundiais e ter seu nome ("Dos Santos") inscrito no código de avaliação da federação internacional, Daiane é o principal destaque da etapa brasileira da Copa do Mundo, que será aberta hoje no Riocentro (zona oeste do Rio). Líder do ranking mundial no solo, ela vai aproveitar o fato de competir pela primeira vez em casa desde que alcançou o estrelato para estrear a coreografia que será apresentada nos Jogos Olímpicos de Atenas, em agosto.
Descoberta pela treinadora Cleusa de Paula em 95, quando brincava numa praça no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, a ginasta gaúcha vai dar uma sambadinha na exibição e diz que escolheu o clássico "Brasileirinho" para colocar "a cara do Brasil" no cenário da ginástica mundial.
A seguir, trechos da entrevista:
 

Folha - Você é a uma das poucas esperanças de medalha do país nos Jogos de Atenas. Como administra a pressão da torcida?
Daiane dos Santos -
Não penso nesta pressão, que todos falam. Não tenho obrigação de ganhar nada. A minha obrigação é a de representar da melhor forma possível o meu país. Não é só com o Brasil, mas comigo. Sou eu que treino sete horas por dias lá dentro. Também quero vencer. Se algo não der certo, a culpa não será minha. Vou dar o meu máximo.

Folha - Ontem [anteontem], você chorou após o treino. Você está tensa?
Daiane -
Chorei porque vocês estão me enlouquecendo. Falando a verdade: estou de saco cheio. Não posso fazer nada. [O assédio da imprensa] É muito legal, mas tem horas que enche o saco. O choro não foi por tensão. Na verdade, há dias em que você não está bem. Ontem [anteontem], não estava muito legal. Aquele choro poderia acontecer na minha casa.
Além disso, torci o dedo. O problema é que as pessoas não estão acostumadas a me ver chorando. Só porque não dei entrevistas ontem [anteontem], as pessoas inventaram um monte de coisas.

Folha - Apesar da pressão, os seus últimos resultados no solo são ótimos. Dá para prometer uma medalha em Atenas?
Daiane -
Não vou prometer nada para ninguém. Tenho grandes chances de vencer e também de não conseguir. Procuro não pensar na pressão. Não posso negar que, quando ando nas ruas, as pessoas sempre pedem pela medalha. Os torcedores querem tanto isso. Se você não tiver uma cabeça legal, pode te atrapalhar.

Folha - No mês passado, em Atenas, você perdeu a invencibilidade que tinha desde agosto do ano passado no solo. Foi uma decepção?
Daiane -
Não. Fiquei rindo com as críticas. Fiquei tranqüila. Na verdade, competi por três semanas e estava exausta [antes, ela havia vencido as duas etapas da Copa do Mundo]. Me matei, mas não errei a minha série. O único problema foi que tive uma falha. Acabei saindo do solo. O difícil é as pessoas entenderem.

Folha - Você pode entrar para a história como a primeira negra a ganhar uma medalha de ouro na ginástica. Tem um significado especial para você?
Daiane -
Claro. Por ser negra, já me sinto feliz de estar na seleção. Quando alguma pessoa da minha raça chega a um posto como o meu, sei o quanto é difícil. Nunca sofri preconceito na ginástica, mas não concordo que não existe racismo no Brasil. Existe sim.

Folha - Você já foi vítima de racismo?
Daiane -
No colégio, já aconteceu. Tem sempre um coleguinha ou outro. Algumas pessoas que falam, mas não dou muita bola para isso. Penso: ignorância dele, que não entende que a cor da pele não quer dizer nada. Por dentro, somos todos iguais. Somos de pele e osso como todos.
[A medalha] Será importante porque estou me tornando um exemplo. Sei que muitas meninas da minha raça me vendo podem ter força para chegar lá. É muito legal. Todos os negros que alcançam uma posição boa vão ajudar a raça. Desde que eles gostem da sua raça, já que têm muitos que não gostam.

Folha - A ginástica é um esporte de branco?
Daiane -
São poucos [os negros] que competem em alto nível . Só nos Estados Unidos existem atletas negros. Na verdade, é difícil ser negro em qualquer esporte.

Folha - A carreira de uma ginasta é curta. Você pensa em competir até quando?
Daiane -
Não sei, mas já tenho definido na minha cabeça o que vou fazer após encerrar a minha carreira. Quero trabalhar com crianças com síndrome de Down.

Folha - A ginástica é um esporte muito tradicional. Na sua nova coreografia, você dá sambadinhas. Você quer colocar o samba no mundo da ginástica?
Daiane -
Estou fazendo a minha coreografia. Só estou querendo colocar a cara do Brasil na ginástica. Só dou uma sambadinha para relaxar (risos).

Folha - Você teve uma infância pobre. Você já conseguiu, com os últimos resultados, a sua independência financeira?
Daiane -
Não estou rica, mas já consegui uma casa própria e um carro. Mesmo assim, tenho muito pela frente.

Folha - Nos últimos meses, você ficou praticamente fora de casa. O que você faz para relaxar?
Daiane -
Adoro uma balada. Na verdade, quase todos os atletas gostam. Sempre que posso, vou com as amigas e o namorado dançar. Tenho namorado. Ele mora em Porto Alegre e está tentando retomar a sua carreira de lutador de jiu-jitsu. Na noite, adoro dançar pagode e funk carioca. São coisas que me ajudam a relaxar. É uma pena que não vou poder ir ao baile do Castelo das Pedras [meca do funk carioca]. O meu namorado disse que não posso ir lá sozinha de jeito nenhum.


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