|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Pódio é chance de mostrar "cara do Brasil", diz Daiane
Ginasta, que busca 1º ouro negro olímpico no feminino, diz que foi vítima de preconceito
SÉRGIO RANGEL
DA SUCURSAL DO RIO
Para Daiane dos Santos, 21, o
Brasil é um país racista. Em entrevista concedida à Folha na noite
de anteontem, a atleta gaúcha,
que pode ser a primeira ginasta
negra a ocupar o lugar mais alto
do pódio olímpico, conta que já
sofreu preconceito racial. Ela revelou o desejo de servir de exemplo para a sua raça.
Daiane não se enquadra no rótulo de atleta bem comportada. A
ginasta, de apenas 1,44 m e 41 kg,
diz que está de "saco cheio" do assédio dos jornalistas, admite ser
"baladeira", namora um lutador
de jiu-jitsu e adora dançar ao ritmo dos funks cariocas.
Depois de entrar para a história
ao obter o primeiro ouro do país
em Mundiais e ter seu nome
("Dos Santos") inscrito no código
de avaliação da federação internacional, Daiane é o principal destaque da etapa brasileira da Copa
do Mundo, que será aberta hoje
no Riocentro (zona oeste do Rio).
Líder do ranking mundial no solo, ela vai aproveitar o fato de
competir pela primeira vez em casa desde que alcançou o estrelato
para estrear a coreografia que será
apresentada nos Jogos Olímpicos
de Atenas, em agosto.
Descoberta pela treinadora
Cleusa de Paula em 95, quando
brincava numa praça no bairro
Menino Deus, em Porto Alegre, a
ginasta gaúcha vai dar uma sambadinha na exibição e diz que escolheu o clássico "Brasileirinho"
para colocar "a cara do Brasil" no
cenário da ginástica mundial.
A seguir, trechos da entrevista:
Folha - Você é a uma das poucas
esperanças de medalha do país nos
Jogos de Atenas. Como administra
a pressão da torcida?
Daiane dos Santos - Não penso
nesta pressão, que todos falam.
Não tenho obrigação de ganhar
nada. A minha obrigação é a de
representar da melhor forma possível o meu país. Não é só com o
Brasil, mas comigo. Sou eu que
treino sete horas por dias lá dentro. Também quero vencer. Se algo não der certo, a culpa não será
minha. Vou dar o meu máximo.
Folha - Ontem [anteontem], você
chorou após o treino. Você está
tensa?
Daiane - Chorei porque vocês estão me enlouquecendo. Falando a
verdade: estou de saco cheio. Não
posso fazer nada. [O assédio da
imprensa] É muito legal, mas tem
horas que enche o saco. O choro
não foi por tensão. Na verdade,
há dias em que você não está
bem. Ontem [anteontem], não
estava muito legal. Aquele choro
poderia acontecer na minha casa.
Além disso, torci o dedo. O problema é que as pessoas não estão
acostumadas a me ver chorando.
Só porque não dei entrevistas ontem [anteontem], as pessoas inventaram um monte de coisas.
Folha - Apesar da pressão, os seus
últimos resultados no solo são ótimos. Dá para prometer uma medalha em Atenas?
Daiane - Não vou prometer nada
para ninguém. Tenho grandes
chances de vencer e também de
não conseguir. Procuro não pensar na pressão. Não posso negar
que, quando ando nas ruas, as
pessoas sempre pedem pela medalha. Os torcedores querem tanto isso. Se você não tiver uma cabeça legal, pode te atrapalhar.
Folha - No mês passado, em Atenas, você perdeu a invencibilidade
que tinha desde agosto do ano passado no solo. Foi uma decepção?
Daiane - Não. Fiquei rindo com
as críticas. Fiquei tranqüila. Na
verdade, competi por três semanas e estava exausta [antes, ela havia vencido as duas etapas da Copa do Mundo]. Me matei, mas
não errei a minha série. O único
problema foi que tive uma falha.
Acabei saindo do solo. O difícil é
as pessoas entenderem.
Folha - Você pode entrar para a
história como a primeira negra a
ganhar uma medalha de ouro na
ginástica. Tem um significado especial para você?
Daiane - Claro. Por ser negra, já
me sinto feliz de estar na seleção.
Quando alguma pessoa da minha
raça chega a um posto como o
meu, sei o quanto é difícil. Nunca
sofri preconceito na ginástica,
mas não concordo que não existe
racismo no Brasil. Existe sim.
Folha - Você já foi vítima de racismo?
Daiane - No colégio, já aconteceu. Tem sempre um coleguinha
ou outro. Algumas pessoas que
falam, mas não dou muita bola
para isso. Penso: ignorância dele,
que não entende que a cor da pele
não quer dizer nada. Por dentro,
somos todos iguais. Somos de pele e osso como todos.
[A medalha] Será importante
porque estou me tornando um
exemplo. Sei que muitas meninas
da minha raça me vendo podem
ter força para chegar lá. É muito
legal. Todos os negros que alcançam uma posição boa vão ajudar
a raça. Desde que eles gostem da
sua raça, já que têm muitos que
não gostam.
Folha - A ginástica é um esporte
de branco?
Daiane - São poucos [os negros]
que competem em alto nível . Só
nos Estados Unidos existem atletas negros. Na verdade, é difícil ser
negro em qualquer esporte.
Folha - A carreira de uma ginasta
é curta. Você pensa em competir
até quando?
Daiane - Não sei, mas já tenho
definido na minha cabeça o que
vou fazer após encerrar a minha
carreira. Quero trabalhar com
crianças com síndrome de Down.
Folha - A ginástica é um esporte
muito tradicional. Na sua nova coreografia, você dá sambadinhas.
Você quer colocar o samba no mundo da ginástica?
Daiane - Estou fazendo a minha
coreografia. Só estou querendo
colocar a cara do Brasil na ginástica. Só dou uma sambadinha para
relaxar (risos).
Folha - Você teve uma infância
pobre. Você já conseguiu, com os
últimos resultados, a sua independência financeira?
Daiane - Não estou rica, mas já
consegui uma casa própria e um
carro. Mesmo assim, tenho muito
pela frente.
Folha - Nos últimos meses, você
ficou praticamente fora de casa. O
que você faz para relaxar?
Daiane - Adoro uma balada. Na
verdade, quase todos os atletas
gostam. Sempre que posso, vou
com as amigas e o namorado dançar. Tenho namorado. Ele mora
em Porto Alegre e está tentando
retomar a sua carreira de lutador
de jiu-jitsu. Na noite, adoro dançar pagode e funk carioca. São
coisas que me ajudam a relaxar. É
uma pena que não vou poder ir ao
baile do Castelo das Pedras [meca
do funk carioca]. O meu namorado disse que não posso ir lá sozinha de jeito nenhum.
Texto Anterior: Painel FC Próximo Texto: Saiba mais: País ganha torneio após insistência, parcerias e título Índice
|