São Paulo, Segunda-feira, 03 de Janeiro de 2000


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Sir Walter Scott e o futebol do futebol

RODRIGO BERTOLOTTO
da Reportagem Local

Nesta quarta-feira, às 18h45, no estádio do Morumbi, será dado o início oficial para a nova ordem do futebol no planeta.
Nesse dia e hora começa o primeiro Mundial de Clubes da Fifa, com Corinthians, Vasco, Real Madrid, Manchester e mais uns times coadjuvantes, como o Necaxa e o South Melbourne.
Os céticos e passadistas anunciarão seu fracasso, com base na idéia de que ""Mundial ou Copa mesmo tem de ser de seleções".
Fechando os olhos para a realidade ao redor, eles continuarão a acreditar que o esporte é o último santuário do nacionalismo.
Mas essa idéia não resiste ao ensinamento tirado de um episódio do século 19. Vamos a ele:
Com uma mentalidade de folclorista, Sir Walter Scott (1771-1832) deixava várias vezes sua Edimburgo natal para excursionar pela fronteira anglo-escocesa.
Em uma dessas viagens, em 1815 (é quase uma afronta falar em ano tão distante nesse momento em que todos só se importam listar o pior e o melhor do século 20), o romancista, autor de ""Ivanhoé", testemunhou e até arbitrou uma partida de futebol.
Na época, o futebol era um divertimento de poucas regras, praticado só por camponeses.
Ganhava a aldeia que transportava pelas pastagens e colinas a bola, feita de tripas, até a entrada do povoado vizinho.
Sir Walter Scott se esmerou em descrever as cenas detalhadamente, como se aquele jogo fosse se extinguir na década seguinte.
Depois, fez um poema para o futebol, o primeiro exemplo de reverência literária à modalidade.
""Dispa-se, rapaz, e enfrente, mesmo no frio cortante, o infortúnio de cair, mas pense: há coisas piores que tombar no chão, afinal, a vida não é nada mais do que um jogo de futebol."
O que ele não sabia é que aquele esporte lamacento e brusco ganharia uma vida longa e próspera, transformando-se em uma indústria que movimenta na atualidade bilhões de dólares ao ano.
Isso mostra que só se compreende as mudanças internas de uma única forma: analisando a História, com ""h" maiúsculo.
O futebol foi domado pelos estudantes de Oxford, que lhe deram leis e um formato para virar produto de exportação do Império Britânico, que o espalhou de navio pelo mundo.
Todas as mudanças históricas seguintes atingiram em cheio a modalidade, provocando transformações irreversíveis.
Simultaneamente às conquistas trabalhistas pelo mundo, veio a profissionalização do futebolista nos anos 30.
O mundo polarizado do século 20 estimulou as competições mundiais, como se os gramados repetissem em miniatura os conflitos, bélicos ou latentes.
A televisão, nos anos 70, e o marketing, nos anos 80, entraram na jogada para tornar o esporte um grande negócio.
A mais recente e radical mudança é a transformação dos clubes em empresas, e os jogadores em prestadores de serviços.
Na verdade, os clubes, seguindo o exemplo das próprias nações, estão sendo engolfados por grandes corporações multinacionais.
Como o centro de poder e dinheiro se deslocou das repartições públicas para os escritórios privados, saíram enfraquecidas a idéia de Estado-nação e, sua versão futebolística, a seleção nacional.
É justamente isso que os passadistas ainda não captaram.
Claro que não está decretado aqui o fim imediato da tradicional Copa do Mundo.
Mas esse evento terá de se acostumar com a concorrência, bastante desleal, que os clubes farão.
E não será surpresa se as agremiações clubísticas vencerem o braço-de-ferro com as federações, esvaziando as seleções.
Isso já acontece atualmente, mas o foco dos clubes está centrado nos torneios continentais e nas eliminatórias.
Um exemplo claro é a Copa América, a mais antiga competição continental de seleções no mundo (começou em 1916).
Tanta tradição não resistiu a pressão dos clubes europeus que não querem liberar suas peças sul-americanas, e o torneio virou um espectro do que era.
Para o brasileiro, esse novo cenário é mais difícil de aceitar, porque ainda a seleção verde-e-amarela é uma marca muito mais forte mundialmente que qualquer clube local -o Santos de Pelé, claro, a frente deles.
Mas se for usada a ótica européia, tudo fica mais nítido, afinal, lá o cenário é de clubes fortes e seleções enfraquecidas.
Real Madrid ou Barcelona têm mais nome que a seleção espanhola. O Benfica possui mais feitos que o selecionado português. Juventus e Milan não ficam nada a dever à chamada ""Squadra Azzurra", e os do Manchester rivalizam em pé de igualdade com os do "English Team".
Mas a chegada de grandes grupos financeiros, como a HMTF, a ISL ou a Octagon, ao futebol brasileiro vai europeizar a paisagem.
O Mundial de Clubes, que logo mais começa, deve sofrer alguns tropeços de início.
A própria Copa do Mundo quando partiu em 1930 foi menosprezada e boicotada e só engatou mesmo após a Segunda Guerra Mundial.
Contra ou a favor, vá se acostumando. E sinta-se bem-vindo ao adorável futebol novo.


José Geraldo Couto, que escreve neste espaço às segundas-feiras e aos sábados, está de férias


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