São Paulo, sábado, 03 de abril de 2010

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JOSÉ GERALDO COUTO

Cruel, muito cruel


A festa gremista pela lesão do atacante William ilustra como a maldade da massa ignora até a cor da camisa


O ESTÁDIO Olímpico de Porto Alegre foi palco de um fato insólito anteontem.
Aos cinco minutos do segundo tempo de Grêmio 3 x 0 Votoraty, pela Copa do Brasil, o atacante gremista William sentiu uma lesão e teve que deixar o campo. A torcida do seu time o apoiou? Lamentou? Gritou seu nome? Não, muito pelo contrário: comemorou sua contusão como se fosse um gol.
Desde que surgiu, há dez anos, no Santos, William sempre foi um jogador controvertido, daqueles que, mesmo marcando muitos gols, são contestados por boa parte dos torcedores. Chegaram a criar no Orkut uma comunidade chamada "Eu jogo melhor que o William".
Seu caso daria margem à reflexão sobre o lugar dúbio que os atletas tidos como "grossos" ocupam no imaginário popular, mas isso é assunto para outra coluna. O que interessa aqui é a crueldade da massa.
Desde as arenas romanas, sabemos que cidadãos pacatos, quando aglomerados em multidão e submetidos a determinados estímulos, se convertem em linchadores em potencial. A mesma energia que leva à festa, à celebração dionisíaca, pode suscitar a emergência dos piores impulsos vingativos e destrutivos.
Manifestações da sanha descontrolada das massas podem ser vistas em filmes como "Fúria" (1936), de Fritz Lang, e "O Dia do Gafanhoto" (1975), de John Schlesinger. Ou, sem ir longe, nas imagens do público que acompanhou fora do tribunal o julgamento do casal Nardoni.
Um exemplo de que nunca me esqueço, apesar de ocorrido há 30 anos, é o da final do Campeonato Brasileiro de 1980, no Maracanã. Jogavam Flamengo e Atlético-MG, dois timaços. Quando Reinaldo pegava na bola, a galera rubro-negra não perdoava: "Bi-cha-do, bi-cha-do", gritava, em referência às sucessivas contusões do craque.
Reinaldo, mesmo mancando por causa de uma distensão, fez os dois gols atleticanos na derrota por 3 a 2 para o Flamengo. Ao marcar o segundo, de empate, demorou para voltar a seu campo (o empate daria o título ao Atlético). O árbitro José Assis Aragão considerou que ele estava fazendo cera e o expulsou. E a galera: "Bi-cha-do, bi-cha-do".
Isso com um jogador fabuloso, um dos maiores atacantes que o Brasil viu jogar. Não é o caso de William, claro, mas o inédito e assustador, na comemoração do Olímpico, é a hostilidade vir da torcida de seu próprio time. A maldade da massa ignora até a cor da camisa.
Há ofensas corriqueiras, protocolares, que os destinatários já nem ouvem mais: o goleiro chamado de "frangueiro" pelo torcedor adversário, o craque do time rival xingado de "veado", o juiz cuja mãe é lembrada por todos. Mas as ofensas que fogem do script ferem como um soco ou uma tijolada. A festa gremista de anteontem deve ter tido um efeito assim sobre William. Em tempo: a frase que dá título a esta coluna é um bordão célebre do locutor Januário de Oliveira, gaúcho de Alegrete (terra de João Saldanha) que fez carreira no rádio e TV do Rio.
E agora um minuto de silêncio por Armando Nogueira (1927-2010), cronista que teve, entre muitos outros, o mérito de nunca hostilizar ou ridicularizar um profissional do futebol.

jgcouto@uol.com.br


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