São Paulo, quarta, 3 de junho de 1998

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TOM ZÉ

Vocês podem perder, mas, por favor, não percam

Vocês podem perder a Copa.
Uma vez, em Irará (BA), pulamos secretamente o muro do estádio para uma partida entre Rua de Cima x Rua de Baixo. Aquele enorme campo dos adultos parecia despovoado, apesar de nós, jogadores que contavam entre 10 e 12 anos.
As traves, a marcação do campo, tudo nos parecia um templo, um sacramento. O coração batia forte, a cabeça latejava, e eu tinha febre. Era o futebol. E a Rua de Baixo ganhou por 2 a 1.
Mais tarde, no correr da vida, todos o ritos de iniciação me levavam de volta àquela tarde, ao estádio de Irará. As grandes emoções pareciam fortes como o futebol: a primeira namorada, a primeira masturbação, o primeiro palco no qual cantei.
Aquele 2 a 1 é minha eternidade. Digo isso enchendo a boca de heresia, porque o dia que não acaba nunca chama-se história. Vocês podem perder esta Copa, mas, pelo amor de Deus, façam o diabo pra ganhar! Lembrem-se de Tiradentes, Barbosa e Bigode, três imolados. Os dois últimos, "enterrados vivos" depois da derrota na final de 1950 contra os uruguaios. Até seus parentes escondiam a consanguinidade.
É que, submetido ao futebol, qualquer criminoso confessa. Até quem ganha não é perdoado. Veja Zagallo -cruz-credo! Jogou e ganhou as Copas de 58 e 62, foi técnico tricampeão em 70, auxiliar do tetra em 94. Mas nunca foi perdoado. Não gostamos dele.
Aliás, nós brasileiros somos crianças vaidosas e mal-acostumadas. Devemos ganhar no mínimo uma em cada duas Copas, temos de ser favoritos em todas e não podemos ganhar nos pênaltis. É vaidade pra Eclesiastes nenhum botar defeito.
Não exijo nem creio que vocês sejam obrigados a vencer nenhuma Copa. (Ah, meu Deus, como eu quero, com todos os meus sonhos, que vocês vençam! Mas aguentaria a tristeza da perda.)
O futebol tornou-se a única ciência exata que sobreviveu a Heisenberg. A matemática, a física, tudo o mais já admite uma margem de erro. O futebol, não. E logo um jogo no qual as leis das probabilidades e o acaso influenciam tanto nos resultados.
Vocês podem. Mas, pelo amor de Deus, não percam. Porque a crítica nacional tornar-se-ia tão violenta que eu ficaria privado de minha distração preferida; sem poder ouvir crônica esportiva pelo rádio por um mês. Ela se tornaria ácida, peçonhenta.
É verdade que, ganhando, vocês logo serão esquecidos. Paulo José, ator brilhante, comentou, numa entrevista recente, nossa "cultura da derrota". Portanto, logo voltaríamos a "comemorar" a tragédia do Maracanã em 50, o desastre de Sarriá em 82 etc.

Se nascessem mais dez Pelés, provocando, como o primeiro, tanta exaltação, vaidade e orgulho, o Brasil iria à falência. Chega de soberba, de vaidade. Não é bom para uma nação ter tantas glórias de um gênero só.
Deus me apareceu em sonhos: suas asas iam do Pacaembu ao Morumbi, e perguntou se eu preferia que nascessem no Brasil mais dez Pelés ou mais dez Antonios Ermírios de Moraes. Chorei, mas escolhi mais dez Antonios Ermírios. Podem perder. Eu gosto é de futebol. E em nome dele admirarei qualquer campeão. Até a Argentina.


Tom Zé é músico e compositor



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