São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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FUTEBOL

Heróis e super-homens

TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Um dos motivos das más campanhas de equipes de grande tradição nos últimos campeonatos é a ausência de um bom planejamento técnico, agravado pela desorganização de todo o futebol brasileiro.
O planejamento de uma equipe deveria ser feito, no mínimo, por um período de 12 meses.
Como são frequentes as trocas de treinadores, os planos mudam a cada substituição. O novo técnico chega com outro discurso, preferência por outros jogadores, esquema tático e método de trabalho e com a sua turma de auxiliares. Muitos desses são chamados mais pela amizade do que pela competência.
A falta de continuidade prejudica bastante o rendimento da equipe. Raramente dá certo a troca de técnico durante o campeonato. Algumas vezes, o novo treinador recupera a confiança e o entusiasmo dos jogadores e torcedores, o time ganha alguns jogos, mas, logo que termina a lua-de-mel, tudo acaba voltando ao que era -ou piora.
Uma das soluções para o problema seria, obviamente, manter o treinador também no mínimo por um período de um ano, a não ser que ele cometesse graves erros. Nesse caso, o treinador dispensado receberia os salários durante o período do contrato, desde que estivesse sem clube. Isso evitaria as frequentes trocas. Os treinadores também pagariam pesadas multas se deixassem uma equipe no meio do caminho.
Outra solução, que não anularia a primeira, seria a contratação de um coordenador técnico, que faria os planos para o ano inteiro, escolheria o treinador e a comissão técnica, aprovaria a chegada de novos jogadores e supervisionaria todo o trabalho da comissão técnica. Teria inclusive a liberdade de opinar e de dar sugestões ao técnico.
O treinador seria responsável pela escalação dos jogadores, pelo planejamento tático, pela conduta durante as partidas e pela execução dos treinamentos.
Não se pode confundir a função do coordenador com a do atual diretor remunerado, gerente ou supervisor. Eles são responsáveis pela logística, organização e execução dos procedimentos burocráticos. Para comandar a comissão técnica, o coordenador teria de ter um amplo conhecimento sobre futebol e áreas afins.
Para o esquema funcionar bem, o técnico e o coordenador teriam de estar afinados, cada um respeitando os seus limites e apoiando o trabalho do outro. A cumplicidade é essencial. O coordenador não pode sonhar com o cargo do técnico. Nem o treinador deve desejar ter mais poderes do que tem.
Não existe esse coordenador nos clubes. Os que têm tal título, não fazem nada, fingem que fazem ou executam apenas funções burocráticas, como estar sempre à disposição do presidente do clube.
Com exceção do Zagallo em 1994, os coordenadores técnicos da seleção, como Zico em 1998 e Antônio Lopes em 2002, foram figuras decorativas. Eles foram impostos pela CBF e engolidos pelos treinadores. Os dois poderiam, pelo menos, ter assistido aos jogos lá de cima, de onde se vê melhor, para depois passar as informações aos técnicos. As únicas funções de Antônio Lopes no banco eram a de rezar o terço e beijar a medalha, o que fez muito bem.
Zagallo era o ídolo e amigo de Carlos Alberto Parreira desde a Copa de 70. Isso ajudou muito a atuação da dupla na Copa de 94. Duas pessoas entrosadas são mais produtivas do que uma. Ninguém é dono da verdade.
A conquista da Copa de 2002 foi emocionante, merecida, porém teve o lado negativo. Fortaleceu-se o conceito de que a presença de um grande chefe, mistura de pai, herói, super-homem e ditador, é essencial para a vitória. Isso me lembra das opiniões estreitas e retrógradas de algumas pessoas que acham que o melhor para um país é um ditador competente.
A principal qualidade e mérito do Felipão no Mundial não foi a de ser um grande chefe, mas, sim, a de escalar o trio ofensivo formado pelos dois Ronaldinhos e Rivaldo. Os três jogaram com liberdade e nas funções corretas. Outro técnico provavelmente deixaria o Ronaldinho no banco e reforçaria a marcação.
Voltando ao coordenador, a sua presença dividindo funções e responsabilidades com o técnico é ainda uma utopia. Os técnicos não querem dividir o poder, e os torcedores, influenciados pelo show que se transformou a vida atual, sonham com heróis e super-homens na direção das equipes e do país.
Na verdade, os heróis sempre existiram. Eles são a projeção de nossos sonhos e ideais.

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