São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2000

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FUTEBOL
A coerência e os técnicos

TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das mais difíceis virtudes do ser humano é a coerência. Alguns tentam mantê-la em todos os momentos da vida. Quase impossível. São muitas as tentações e encruzilhadas.
Sem perceber, caímos em contradição. "A vida dá muitas voltas. A vida nem é da gente." (João Guimarães Rosa).
Além disso, as idéias e opiniões podem mudar com o tempo. Quando isso acontece, somos cobrados lá na frente.
Outros fazem questão de chutar a coerência para escanteio. São os aproveitadores e carreiristas. Gostam e apóiam somente o que interessa a eles.
Há algumas semanas, escrevi que, se aceitasse o cargo de coordenador técnico da seleção brasileira, Felipão seria meu técnico preferido. Brinquei ao dizer que, se não quisesse, iria embebedá-lo. Afirmei que tentaria convencê-lo a escutar meus palpites. Coordenador é o palpiteiro oficial.
No último domingo, fiz uma crítica ao absurdo número de faltas no futebol brasileiro e aos técnicos, que só pensam em ganhar. Não importam os meios. Até cuspindo no adversário.
Os treinadores dão péssimo exemplo de cidadania. Se no futebol tudo vale para vencer, a mesma conduta é utilizada por parte da sociedade.
Fernando Calazans e José Trajano, duas referências da crônica esportiva, prolongaram o assunto brilhantemente em suas colunas.
Alguns leitores cobraram-me coerência. Se critico as condutas utilitaristas dos treinadores, como poderia o Felipão ser meu técnico preferido? Para esses leitores, o técnico do Cruzeiro simboliza o estilo truculento, autoritário e aético de ganhar de qualquer jeito.
Quase todos os técnicos fazem o mesmo. No mínimo, quando estão mais calmos, mandam parar as jogadas no meio-campo. Felipão é o único deles que assume essa postura. É mais autêntico e transparente. O torcedor gosta dessa franqueza.
Se a maioria dos técnicos faz o mesmo, prefiro o melhor. Isso não significa que concordo com os métodos que utiliza. Ao contrário, detesto. Tentaria mudá-lo.
No último domingo, voltei a criticar o treinador. Ele retrucou as vaias da torcida do Cruzeiro com gestos e palavras agressivas. Essa e outras condutas não ajudam em nada o trabalho dele. Somente atrapalham.
Felipão é um bom técnico na armação e treinamentos de suas equipes. É ruim na relação com a imprensa e com a ética. Pior ainda quando elogia o ex-ditador chileno Pinochet.
Técnico de futebol é importante, mas dezenas de outros fatores influenciam o resultado final. Não são os treinadores que ganham as partidas.
A principal, ou única, função de um técnico é ajudar os jogadores realizarem, em campo, tudo o que sabem. "Técnico bom é o que não atrapalha." (Romário).
Não concordo, mas compreendo a posição dos técnicos. Trabalham sofrendo grande pressão. O time tem de vencer. Se uma equipe obstrui todas as jogadas com faltas, a outra faz o mesmo, senão perde o jogo.
Se fosse treinador, teria de aceitar essa regra maquiavélica e grosseira. Ou abandonaria a profissão.
Não são os técnicos que vão mudar essa situação. São os cronistas esportivos e, principalmente, os torcedores. Até que a Fifa tome providências.
Se ocorressem tantas faltas na Europa, a Fifa já teria estabelecido um limite individual e coletivo. Acima dele, os times e jogadores seriam punidos.
Os torcedores do Cruzeiro reconhecem a competência de seu treinador, mas vaiaram a equipe em Ipatinga e no Mineirão (jogo com o Malutrom), por jogar com desinteresse e apenas pelo resultado. O fato mostra que os torcedores não querem só vitórias. Querem também espetáculo, diversão e arte.
Assim como os torcedores, não deixarei de reconhecer as qualidades técnicas de um treinador ou jogador só porque não gosto de suas atitudes fora de campo. Seria injusto e incoerente. Tenho de analisar o fato.
As pessoas que se destacam, em todas as profissões, são especiais por suas obras. São comuns.
Noto que no esporte, no futebol e na sociedade brasileira em geral, a pessoa é previamente rotulada como boa ou má, competente ou incompetente, craque ou perna-de-pau, intelectual ou ignorante, ética ou aética, brega ou charmosa, moral ou imoral, progressista ou conservadora, prepotente ou humilde, etc...
Não há meio-termo. Depois de carimbada, a conduta dessa pessoa é irrelevante. O diagnóstico já está pronto. Isso é muito perigoso.
Rivaldo, de melhor jogador do mundo, tornou-se o pior. Só enxergam seus defeitos. Transformou-se no Judas da seleção.
Todos temos virtudes e defeitos. Somos humanos. Ambivalentes e pecadores.
Uns mais, outros menos. E-mail tostao.folha@uol.com.br




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