São Paulo, domingo, 04 de outubro de 2009

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Com a Olimpíada, Brasil pode superar "vira-latice"

Para especialistas, realização dos Jogos é oportunidade para derrubar complexo

Vitória põe país como polo nas relações internacionais, mas sucesso esportivo e na organização serão decisivos para consolidar autoestima

LEONARDO CRUZ
MARIANA BASTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

"Deixamos de ser um país de segunda classe. Ganhamos a cidadania internacional", bradava o presidente Lula logo após a escolha do Rio como sede dos Jogos Olímpicos de 2016.
Para alguns especialistas consultados pela Folha, a declaração de Lula em Copenhague simboliza um processo de projeção do país no cenário internacional e ajuda a alimentar o espírito ufanista que dominou os discursos da comitiva brasileira em Copenhague.
Seria a superação do "complexo de vira-latas"? O termo cunhado pelo cronista Nelson Rodrigues expressa "a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo".
"O complexo de vira-latas já virou complexo de cocker spaniel", analisa Sergio Miceli, professor de sociologia da USP.
"A escolha do Rio tem grande repercussão por lidar com o esporte, algo de grande interesse nacional e internacional. Mas a autoestima do brasileiro já melhorou nos últimos anos por causa de uma série de indicadores econômicos e sociais positivos", completa Miceli.
Nos últimos anos, o Brasil consolidou sua posição como principal líder regional nas negociações com EUA e Europa.
Além disso, foi um dos articuladores do fortalecimento do G20, o grupo das 20 maiores economias do mundo, como palco de negociações internacionais, em detrimento do G8.
Para se afirmarem definitivamente no cenário internacional, muitos países emergentes, como o Brasil, usaram a Olimpíada como instrumento.
Nas últimas décadas, os casos mais emblemáticos são os da Coreia do Sul e da China.
Em 1988, os sul-coreanos demonstraram sua pujança econômica como tigre asiático ao sediarem a Olimpíada de Seul.
Vinte anos depois, foi a vez dos chineses. Eles exibiram os Jogos mais exuberantes de todos os tempos diante de 4,4 bilhões de espectadores. Gastaram cerca de US$ 40 bilhões e seu principal legado foi imaterial. A China exibiu-se para o mundo todo como uma das maiores potências atuais.
Para especialistas, o Brasil segue uma trajetória similar.
"A mídia dá uma visibilidade cósmica aos Jogos. Em um mundo no qual se opera muito com a imagem, isso [sediar uma Olimpíada] tem um impacto colossal", declara o economista Carlos Lessa.
O país, aliás, encerra o ciclo de grandes eventos esportivos sediados pelos Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), países emergentes, em uma década.
Após Pequim-08, haverá em 2010, em Nova Déli (Índia), os Jogos da Comunidade Britânica. Quatro anos depois, o Brasil sediará a Copa do Mundo, e Sochi, na Rússia, a Olimpíada de Inverno. Em 2016, o Rio de Janeiro complementa o ciclo.
"Não que o Brasil tenha virado uma potência, mas a escolha do Rio para sediar a Olimpíada é mais um indicador do rearranjo da posição brasileira no mundo. É a cereja do bolo," afirma Sérgio Miceli.
Anteontem, inclusive, paralelamente à comemoração nas ruas do Rio, milhares de brasileiros demonstravam com humor seu otimismo na internet.
O termo "Yes, we créu" -paródia ao "Yes, we can", do presidente americano Barack Obama- virou hit no Twitter, microblog usado no mundo inteiro. Sempre associado à Olimpíada no Rio, ele liderou a lista de expressões mais usadas durante toda a sexta-feira.
Para o antropólogo carioca Gilberto Velho, a sensação de ufanismo e deslumbramento do povo vem acompanhada ainda por uma certa desconfiança sobre a capacidade de o país obter ganhos materiais por abrigar os Jogos Olímpicos.
"Saí nas ruas de Ipanema hoje [anteontem] à tarde para sentir o espírito e vi que as pessoas estão animadas. Mas tem muita gente cética, muita gente preocupada por causa de experiências anteriores", diz Velho, em referência ao Pan de 2007, cujo orçamento foi de R$ 3,7 bilhões, muito superior ao originalmente estimado.
"O Pan foi muito frustrante para muita gente. Houve desde o não cumprimento de promessas básicas até o desvio de recursos financeiros. Coisas que foram abandonadas. Então, espera-se que não haja nada similar na Olimpíada porque isso gera uma desmoralização. Dá muito medo", pontua.
Mesmo que o país se saia bem na organização dos Jogos, ainda há a possibilidade de o brasileiro voltar a assumir o complexo de vira-latas. Para o historiador Manolo Florentino, o país terá que ter um êxito similar no âmbito esportivo.
"O brasileiro não aceita ser segundo colocado", avalia o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Se a escolha do Rio infla o ego nacional agora, o desempenho do país na competição de 2016 tem grande chance de causar um sentimento de frustração, porque é improvável que o país se mostre uma potência olímpica", completa.
Foi justamente essa frustração, advinda de uma das maiores derrotas brasileiras dentro de campo, que fez Nelson Rodrigues criar o termo "complexo de vira-latas". O revés diante do Uruguai na final Copa de 1950, justamente o último grande evento esportivo sediado no Brasil, deixou o país atônito e criou o Maracanazo.
"Perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: porque Obdulio [Varela, capitão uruguaio] nos tratou a pontapés, como se vira- -latas fôssemos", afirmava a crônica de Nelson Rodrigues.



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