São Paulo, sexta-feira, 07 de junho de 2002

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WILL SELF

E se a rainha se engasgasse?

Escrevi na semana passada sobre o espírito derrotista da Inglaterra em relação à seleção e sobre o meu desinteresse a respeito disso. O fim de semana significou, se é possível tal metafórica contradição, o ponto mais alto da minha indiferença.
No domingo, os ingleses fizeram sua primeira partida na Copa, que deveria ter sido um massacre impiedoso dos inferiores -embora obstinados- suecos.
Em vez disso, como eu havia previsto aqui, a seleção inglesa, com sua insuperável habilidade de tornar qualquer partida um tedioso e indigesto evento, se empenhou para segurar o empate em 1 a 1 com os escandinavos.
Tinha pensado, no início da semana, em ir a uma casa de apostas (na Inglaterra, toda área comercial tem um lugar onde podem ser feitas apostas legais em competições esportivas) e perguntar quanto pagaria o empate em 1 a 1. A pergunta seria vista como ainda mais absurda do que indagar sobre as possibilidades de uma contundente derrota, porque esta hipótese era tão inconcebível à psique inglesa quanto à de a rainha se engasgar com um amendoim durante as celebrações do jubileu de seu reinado e morrer de um choque anafilático.
Quer dizer, sugerir que a rainha pudesse morrer assim (ou mesmo perguntar se é possível apostar nisso) faria de mim um traidor, enquanto que cogitar uma derrota da seleção inglesa seria "só" um caso de heresia.
Para compreender a dimensão religiosa do que afirmei, basta observar os cartazes colocados nos pubs, informando as próximas partidas da seleção (e as marcas de cerveja que serão servidas durante) com o slogan "Nós confiamos em Sven". Ninguém acha inexplicável ou no mínimo bizarro comparar o técnico ao Deus Todo-Poderoso. Exceto eu.
Não, a Inglaterra não podia mesmo começar a Copa perdendo -embora o revés seja inevitável. Antes, tem de obter um empate sofrido, talvez uma valorosa e magra derrota para a Argentina -o que deve estar ocorrendo justamente enquanto você lê isto. Para que os ingleses sintam que conquistaram a derrota que inconscientemente desejam, o time precisa tê-la merecido.
Assim, a seleção nacional joga na Copa num domingo, e na segunda e na terça a monarquia celebra os 50 anos de -suposto- glorioso reinado, com um grandioso show pop em sua casa. Todo o estúpido mundo pop foi chamado para o evento, incluindo sexagenárias "estrelas do rock", como sir Paul McCartney, sir Elton John e sir Cliff Richard. Deus nos livre de todos esses cavaleiros pop da távola quadrada.
Consegui me manter longe de Inglaterra x Suécia usando o simples expediente de levar meus filhos para passear de moto no campo. Era uma região bonita, o vale de Pershore, área bem conservada bem no coração da Inglaterra. Quão adequado foi me distrair, evitando todo o nacionalismo exacerbado, vagabundeando ao lado de caminhões empoeirados, enquanto o sol batia nas crianças, que gritavam de felicidade. Só descobri quem havia feito os gols quando perguntei ao meu filho de 11 anos ontem de manhã, pouco antes de me sentar para escrever este texto.
Foi mais difícil me livrar do show em comemoração ao jubileu. A casa da rainha está a poucos quilômetros da minha. Se eu convidasse um milhão de pessoas à minha casa para ouvir música altíssima, teria a decência de pedir permissão antes. Mas a rainha não fez nada disso, e ainda permitiu que estourassem fogos de artifícios durante horas.
No dia seguinte, Mike, o taciturno indiano que toma conta do armazém da vizinhança, indagou por que eu parecia tão mal-humorado. "Bem", disse a ele, "sou republicano, não gosto de futebol, e seu país natal está à beira de detonar uma guerra nuclear". "Deu para entender?"


Will Self, 38, é autor de "Cock and Bull" e "Quantity Theory of Insanity" e um dos mais importantes nomes da nova geração de escritores britânicos



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