São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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Outra noção de pátria

"Quizás mi única noción de patria sea urgencia de decir Nosotros" Mário Benedetti
Se a seleção não é a pátria de chuteiras, onde está a pátria? A construção do Brasil como nação foi um processo a solavancos, interrompido e em vias de regressão nos últimos tempos. Colônia antes de sermos nação, fomos convocados para o serviço militar e obrigados a pagar imposto antes de termos o direito de votar, fomos contribuintes e soldados antes do que cidadãos, torcemos pelo Brasil com a liberdade aprisionada e torturada. Fragmentados socialmente, só nos unimos em torno da seleção.
Até 1958, a afirmação da nossa identidade estava na natureza ou numa construção humana de duvidoso orgulho - o Maracanã, por haver sido palco da derrota que confirmava, até ali, nossa incapacidade para o triunfo. Cinema novo ou bossa nova eram fenômenos para poucos -João Gilberto de um lado, Adelino Moreira de outro; Glauber de um lado, Mazzaropi de outro; a música ou o cinema tampouco nos uniam.
Hoje, em torno de quê estaríamos unidos, seríamos todos brasileiros?
A imagem que nos devolve o mundo é ambígua: somos o país do carnaval, da música, da sensualidade, do futebol, das telenovelas, mas também o da maior injustiça social, do massacre e da escravização de crianças, das queimadas, da seca. Uma certa benevolência com o Brasil cativa simpatia, mas convive com o sentimento de horror sobre o país, que não atrai mais turista algum, que prefere cultuar seu Brasil de longe, no sonho e na imaginação.
Mais recentemente, o governo brasileiro e as elites resolveram só falar mal do país, mostrando como detestam o Brasil. Só se referem a nós para ressaltar o "custo Brasil", que viria dos trabalhadores e não dos lucros exorbitantes dos capitalistas, dos salários astronômicos dos executivos e das taxas de juros estratosféricas. Para criminalizar quem vive do trabalho, absolvendo quem vive da especulação. Para desqualificar os professores. Para atacar nosso "caipirismo", nossa "falta de patriotismo", nossa "falta de otimismo". Ao lado disso, promovem um gigantesco processo de desconstrução nacional, diluindo o Brasil de forma subserviente no mercado mundial. Como resultado, parece que o Betinho morreu há cinco ou dez anos.
Restaria assim realmente o esporte para nos congregar, mágica e instantaneamente: o Senna, o vôlei, o Guga, o futebol.
Salvo se, nesta última possibilidade do século, dermos uma virada e recuperarmos a noção de pátria, de nação, de solidariedade, de coletividade. Se der penta, melhor ainda. Mas é melhor não dependermos dele e contarmos com o nosso voto e a nossa vontade. Para que possamos realizar essa urgência de voltar a falar "Nós".


Emir Sader
, 54, é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo



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