São Paulo, sexta-feira, 07 de julho de 2006

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"Escória" busca desforra com título

População dos subúrbios franceses apóia seus "irmãos" na seleção para impor derrota a racismo no país

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS

A França não seria a França se não filosofasse e politizasse todas as questões, as banais e as transcendentais, Copa do Mundo incluída.
É natural, portanto, que, tanto quanto as qualidades e defeitos da seleção que disputará a final e quase tanto quanto a devoção a Zinedine Zidane, a França aproveite o Mundial para continuar discutindo suas cores e a integração delas.
Não se trata apenas de uma discussão restrita aos cafés literários, à mídia intelectualizada ou aos círculos acadêmicos. Não. O jornal "Le Monde" captou, entre as cerca de 500 mil pessoas que festejaram anteontem a passagem às finais, em plena avenida Champs-Elysées, dois jovens com um cartaz que dizia: "A escória vai nos trazer a Copa; é magnífico!".
O cartaz usava a palavra "les racailles", utilizada pelo ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, presumível candidato presidencial no ano que vem, para designar os jovens dos "banlieu", os subúrbios, que promoveram uma revolta e virtualmente incendiaram a França, queimando uma quantidade industrial de automóveis.
Agora, é a hora da desforra: os jogadores que, segundo o cartaz, trarão a Copa para a França são, na grande maioria, filhos de imigrantes dos "ban-lieu", que tiveram a sorte de ascender socialmente usando o elevador do futebol.
A seleção francesa continua sendo o que, em 1998, se batizou de três "bês", um deles em inglês: "blanc/black/beur" ou "branca, negra e árabe (neste caso, invertendo as sílabas da palavra árabe)".
Aliás, é hoje talvez mais "black e beur" que "blanc", a ponto de o filósofo Alain Finkielkraut ter reclamado, precisamente durante a revolta dos subúrbios, que a equipe nacional era, na realidade, "black/ black/black, o que a faz motivo de risos em toda a Europa".
Racismo à parte, pelo menos nas duas partidas mais recentes da seleção "bleu" (a cor da camisa, embora tenha sido branca anteontem), os destaques foram o descendente de argelinos Zidane, contra o Brasil, e Liliam Thuram, de Guadalupe, possessão francesa, contra Portugal.
O problema é que os três "bês" eram usados como motivo de orgulho pelos franceses em 1998, símbolos de uma integração bem-sucedida, de um multiculturalismo invejável.
A revolta dos subúrbios destruiu a imagem e fez os grupos de defesa dos imigrantes descobrirem que eles "existem no esporte, no hip hop e mais nada", como disse ao "Monde" Sonia Imloul, fundadora da associação "Respect 93", para a defesa dos "beurs".
Reforça Dogad Dogoui, presidente de Africagora, associação de empresários para promover a diversidade: "O futebol mostra que se pode ser diferente e compartilhar um projeto comum. Mas ainda falta que as instituições, os que decidem, aceitem ver a França como azul. Aí é que se dá o bloqueio".
Mas, enquanto dura a viagem francesa no Mundial, o bloqueio some, do que dá prova o cartaz encontrado pelo "Monde": os jovens, mesmo apontando a discriminação contida na palavra "racailles", sentem-se felizes pelo fato de seus quase-companheiros estarem com uma das mãos na taça.
Só não há, fora dos dias de jogo, a efervescência que ocorre no Brasil, o festival de camisetas e outros enfeites alusivos. Talvez porque, como diz o editorial de capa de ontem do jornal esportivo "L'Équipe", "chegar ao 9 de julho [o dia da final] parecia tratar-se de uma doce quimera faz apenas dez dias".
Agora, a quimera está próxima, mas a mídia não se ilude. Fora Zidane, o futebol da seleção é tratado como "realista", no título principal de "Le Figaro" e coincidentemente em texto do concorrente "Le Monde". É um arabesco bem francês para dizer que não é exatamente um futebol mágico.


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