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"Escória" busca desforra com título
População dos subúrbios franceses apóia seus "irmãos" na seleção para impor derrota a racismo no país
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS
A França não seria a França
se não filosofasse e politizasse
todas as questões, as banais e as
transcendentais, Copa do
Mundo incluída.
É natural, portanto, que, tanto quanto as qualidades e defeitos da seleção que disputará a
final e quase tanto quanto a devoção a Zinedine Zidane, a
França aproveite o Mundial para continuar discutindo suas
cores e a integração delas.
Não se trata apenas de uma
discussão restrita aos cafés literários, à mídia intelectualizada
ou aos círculos acadêmicos.
Não. O jornal "Le Monde" captou, entre as cerca de 500 mil
pessoas que festejaram anteontem a passagem às finais, em
plena avenida Champs-Elysées, dois jovens com um cartaz
que dizia: "A escória vai nos trazer a Copa; é magnífico!".
O cartaz usava a palavra "les
racailles", utilizada pelo ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, presumível candidato
presidencial no ano que vem,
para designar os jovens dos
"banlieu", os subúrbios, que
promoveram uma revolta e virtualmente incendiaram a França, queimando uma quantidade
industrial de automóveis.
Agora, é a hora da desforra:
os jogadores que, segundo o
cartaz, trarão a Copa para a
França são, na grande maioria,
filhos de imigrantes dos "ban-lieu", que tiveram a sorte de ascender socialmente usando o
elevador do futebol.
A seleção francesa continua
sendo o que, em 1998, se batizou de três "bês", um deles em
inglês: "blanc/black/beur" ou
"branca, negra e árabe (neste
caso, invertendo as sílabas da
palavra árabe)".
Aliás, é hoje talvez mais
"black e beur" que "blanc", a
ponto de o filósofo Alain Finkielkraut ter reclamado, precisamente durante a revolta dos
subúrbios, que a equipe nacional era, na realidade, "black/
black/black, o que a faz motivo
de risos em toda a Europa".
Racismo à parte, pelo menos
nas duas partidas mais recentes da seleção "bleu" (a cor da
camisa, embora tenha sido
branca anteontem), os destaques foram o descendente de
argelinos Zidane, contra o Brasil, e Liliam Thuram, de Guadalupe, possessão francesa, contra Portugal.
O problema é que os três
"bês" eram usados como motivo de orgulho pelos franceses
em 1998, símbolos de uma integração bem-sucedida, de um
multiculturalismo invejável.
A revolta dos subúrbios destruiu a imagem e fez os grupos
de defesa dos imigrantes descobrirem que eles "existem no esporte, no hip hop e mais nada",
como disse ao "Monde" Sonia
Imloul, fundadora da associação "Respect 93", para a defesa
dos "beurs".
Reforça Dogad Dogoui, presidente de Africagora, associação de empresários para promover a diversidade: "O futebol
mostra que se pode ser diferente e compartilhar um projeto
comum. Mas ainda falta que as
instituições, os que decidem,
aceitem ver a França como
azul. Aí é que se dá o bloqueio".
Mas, enquanto dura a viagem
francesa no Mundial, o bloqueio some, do que dá prova o
cartaz encontrado pelo "Monde": os jovens, mesmo apontando a discriminação contida na
palavra "racailles", sentem-se
felizes pelo fato de seus quase-companheiros estarem com
uma das mãos na taça.
Só não há, fora dos dias de jogo, a efervescência que ocorre
no Brasil, o festival de camisetas e outros enfeites alusivos.
Talvez porque, como diz o editorial de capa de ontem do jornal esportivo "L'Équipe", "chegar ao 9 de julho [o dia da final]
parecia tratar-se de uma doce
quimera faz apenas dez dias".
Agora, a quimera está próxima, mas a mídia não se ilude.
Fora Zidane, o futebol da seleção é tratado como "realista",
no título principal de "Le Figaro" e coincidentemente em texto do concorrente "Le Monde".
É um arabesco bem francês para dizer que não é exatamente
um futebol mágico.
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