São Paulo, sexta-feira, 09 de outubro de 2009

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XICO SÁ

Aos rebaixáveis, com carinho


Só a traição ou o descenso fazem do torcedor voraz um homem mais sensível, para o total deleite da patroa

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, você que já não tem mais forças para acompanhar a lenta agonia do seu time rumo ao rebaixamento, é a você, meu caro, que dedico esta crônica. Chega de G4 e da obsessão pela Libertadores. Como me falou o sábio dom Campos Viejo, sob o olhar ensinucado do Peréio, taco de ouro da Bela Vista, "no futebol prefiro uma boa choradeira a essa alegria tola e idiota".
Você que esperou, rodada a rodada, por reação, milagre, você que pediu sangue, luta em campo, você que xingou os cartolas e fez coro com as obviedades repetidas ao infinitum nas mesas-redondas: faltou organização, trabalho e planejamento.
Você que tem sido tão bom homem e marido, o cara, "o que deu nesse desalmado?", indaga a cria da sua costela, ainda besta e feliz com a mudança, até a levou ao cinema e depois jantou fora, em plena quarta- -feira, que passa?!
Claro que andou lentamente ao passar por um boteco em que a TV estava ligada no jogo. Não parou, mas viu que estava 0 a 0, menos mal, por enquanto. Até esticou a orelha para ouvir o radinho do porteiro.
Mas seguiu em frente na sua fuga, sem essa, doença tem limite, chega.
Quando começou o filme "À Deriva", do Heitor Dhalia, você ainda se lembrava do seu Fluminense, que já estava em campo contra o Corinthians, mas, alto lá, doença tem limite, repete o mantra, você não é daqueles que pedem luta até o fim, como se futebol fosse uma questão de vida ou morte, você vai até um ponto e estanca o sofrimento.
É, você tenta se convencer da tese preventiva que adotou, mas não está sendo fácil, como cantava a cantora cega e amiga do rei Roberto, a Kátia.
Mas o seu fingimento convence, pede uma massa, um vinho, a patroa agradece, havia séculos não era tão romântico -em dia de jogo, então, sem chance. O amigo faz bonito. Nem quer saber do freguês do lado qual foi o resultado do futebol.
Até sexo, amigo, o personagem real dessa história realíssima que vos conto fez naquela noite ao voltar para o aconchego. Milagre mesmo, pensou a costela amada, Deus existe, o amor regenera, não é apenas letra de samba do Ismael Silva.
Não foi assim aquele amante que pratica todos os bambuais do kama sutra, mas deu para o gasto, esqueceu-se até de uma velha pesquisa que associa a produção de testosterona do macho com a performance do seu time. Se dependesse do Flu, minha Nossa Senhora dos Afogados!
É apenas um caso dos que vivem a lenta agonia do rebaixamento. O melhor é que o relato é da mulher do tricolor, amigo, às risadas, orgulhosa do efeito da tabela do campeonato. É palmeirense e paulistana, está na outra ponta da tabela, mas é dessas fêmeas que não perdem tempo com o esporte. "Futebol de mulher é a sedução permanente", diz ela.
A sábia senhora, bela afilhada de Balzac, confessa que já chegou a ter certa piedade do marido. Agora, porém, curte o efeito do processo.
Só a traição ou o rebaixamento tornam um homem doente mais sensível. Ela segue na sua filosofia.
Calma, o Flu não caiu ainda, admoesto. Reage, tricolor, pelo amor do tio Nelson, pra cima deles, moçada, dá tempo, esquece os números, pelo Sobrenatural de Almeida, pelos mortos que governam os vivos.

xico.folha@uol.com.br


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