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FUTEBOL
O clássico e o "gauche"
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
H oje é dia de tira-teima entre os operários do ABC e os
do Parque Antarctica, entre o rico
Vasco e o modesto Paraná.
Mas não é sobre isso que vou falar aqui hoje, e sim sobre a confusão que a Fifa armou em torno da
tal eleição de melhor futebolista
do século.
O assunto já motivou todo tipo
de comentário e fez vir à tona
duas pragas abomináveis: o ufanismo patrioteiro (que coloca a
questão em termos de Brasil x Argentina) e a patrulha moralista
(que opõe o "bom exemplo" Pelé
ao "drogado" Maradona).
Já vou adiantando que, se fosse
consultado, eu votaria em Pelé,
mas não porque ele é brasileiro
nem porque é abstêmio em matéria de drogas, mas porque jogou
bola como ninguém (pelo menos
que eu tenha visto).
Também há uma razão subjetiva para minha posição. O reinado de Pelé coincidiu com meus
anos de infância e adolescência,
época em que se formam os laços
afetivos mais sólidos, os referenciais mais duradouros.
Em vista disso, mesmo que um
dia surja outro jogador tão fabuloso como Pelé, ele não terá, aos
meus olhos, a mesma grandeza e
o mesmo fulgor.
Esse aspecto subjetivo é importante para avaliar o resultado da
tal eleição da Fifa.
Ora, se a Fifa, como parece, não
queria que o escolhido fosse Maradona (por sua ligação com as
drogas e por sua militância anti"establishment"), não deveria
ter feito a consulta via Internet.
Pois é sabido que a maioria dos
internautas tem menos de 40
anos. Com essa idade, poucos viram Pelé jogar. Afinal, o Rei disputou sua última Copa do Mundo há 30 anos.
Nas décadas seguintes, Maradona reinou incontestado. "Todo
mundo" o viu ganhar praticamente sozinho a Copa de 86, ser
vice em 90, tentar dramaticamente a volta por cima em 94. Suas jogadas fenomenais, filmadas de
todos os ângulos, estão a todo momento sendo exibidas na TV.
O resultado dessas circunstâncias não podia ser outro: é evidente que, para as novas gerações, o
nome Maradona tem um significado muito mais vivo e presente
do que o nome Pelé. Este tende a
tornar-se uma figura veneranda,
mítica, mas cada vez mais esmaecida.
Imagino que, para os jovens,
ouvir falar de Pelé hoje seja mais
ou menos como era, para os da
minha geração, ouvir falar de
Leônidas, Zizinho ou Domingos
da Guia.
São homens aos quais devotamos respeito mais por tradição do
que por conhecimento direto. Como se fossem deuses que herdamos da religião de nossos pais.
Além do mais, é sempre difícil
avaliar comparativamente jogadores de épocas distintas. O futebol mudou tanto que é quase como comparar atletas de esportes
diferentes.
Talvez seja mais interessante
pensar em Pelé e Maradona como
figuras opostas e complementares, conforme sugeriu Tostão recentemente.
Pelé, para mim, representa a
perfeição clássica, com todos os
atributos que lhe correspondem:
harmonia, elegância, equilíbrio,
simetria.
Sua constituição física, sua técnica e seu temperamento predispunham-no a isso. Seu futebol era
ao mesmo tempo impetuoso e
controlado, refinado e intenso.
Uma arte bela e objetiva como a
pintura de Da Vinci ou, antes, de
Rafael.
Diego Maradona é de outra cepa. Baixinho, explosivo, irremediavelmente canhoto, só poderia
vencer se renunciasse ao modelo
clássico e buscasse por linhas tortas sua própria geometria.
Assim, fez do desequilíbrio e da
falta a sua força. Por não chutar
com o pé direito, desenvolveu
uma esquerda capaz de prodígios. Por não conseguir avançar
em linha reta, traçou arabescos
em direção ao gol.
Por não ter a serenidade dos soberanos, foi ser "gauche" na vida:
o que grita impropérios, o que
perturba a paz, o que se rebela, o
inimigo do rei.
Se Pelé é o clássico, Maradona é
o barroco.
Se Pelé é Rafael, Maradona é
Caravaggio.
Ambos enriqueceram o mundo.
Ambos merecem respeito e gratidão.
E-mail: jgcouto@uol.com.br
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