São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2000

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FUTEBOL

O clássico e o "gauche"



JOSÉ GERALDO COUTO

COLUNISTA DA FOLHA

H oje é dia de tira-teima entre os operários do ABC e os do Parque Antarctica, entre o rico Vasco e o modesto Paraná.
Mas não é sobre isso que vou falar aqui hoje, e sim sobre a confusão que a Fifa armou em torno da tal eleição de melhor futebolista do século.
O assunto já motivou todo tipo de comentário e fez vir à tona duas pragas abomináveis: o ufanismo patrioteiro (que coloca a questão em termos de Brasil x Argentina) e a patrulha moralista (que opõe o "bom exemplo" Pelé ao "drogado" Maradona).
Já vou adiantando que, se fosse consultado, eu votaria em Pelé, mas não porque ele é brasileiro nem porque é abstêmio em matéria de drogas, mas porque jogou bola como ninguém (pelo menos que eu tenha visto).
Também há uma razão subjetiva para minha posição. O reinado de Pelé coincidiu com meus anos de infância e adolescência, época em que se formam os laços afetivos mais sólidos, os referenciais mais duradouros.
Em vista disso, mesmo que um dia surja outro jogador tão fabuloso como Pelé, ele não terá, aos meus olhos, a mesma grandeza e o mesmo fulgor.
Esse aspecto subjetivo é importante para avaliar o resultado da tal eleição da Fifa.
Ora, se a Fifa, como parece, não queria que o escolhido fosse Maradona (por sua ligação com as drogas e por sua militância anti"establishment"), não deveria ter feito a consulta via Internet.
Pois é sabido que a maioria dos internautas tem menos de 40 anos. Com essa idade, poucos viram Pelé jogar. Afinal, o Rei disputou sua última Copa do Mundo há 30 anos.
Nas décadas seguintes, Maradona reinou incontestado. "Todo mundo" o viu ganhar praticamente sozinho a Copa de 86, ser vice em 90, tentar dramaticamente a volta por cima em 94. Suas jogadas fenomenais, filmadas de todos os ângulos, estão a todo momento sendo exibidas na TV.
O resultado dessas circunstâncias não podia ser outro: é evidente que, para as novas gerações, o nome Maradona tem um significado muito mais vivo e presente do que o nome Pelé. Este tende a tornar-se uma figura veneranda, mítica, mas cada vez mais esmaecida.
Imagino que, para os jovens, ouvir falar de Pelé hoje seja mais ou menos como era, para os da minha geração, ouvir falar de Leônidas, Zizinho ou Domingos da Guia.
São homens aos quais devotamos respeito mais por tradição do que por conhecimento direto. Como se fossem deuses que herdamos da religião de nossos pais.
Além do mais, é sempre difícil avaliar comparativamente jogadores de épocas distintas. O futebol mudou tanto que é quase como comparar atletas de esportes diferentes.
Talvez seja mais interessante pensar em Pelé e Maradona como figuras opostas e complementares, conforme sugeriu Tostão recentemente.
Pelé, para mim, representa a perfeição clássica, com todos os atributos que lhe correspondem: harmonia, elegância, equilíbrio, simetria.
Sua constituição física, sua técnica e seu temperamento predispunham-no a isso. Seu futebol era ao mesmo tempo impetuoso e controlado, refinado e intenso. Uma arte bela e objetiva como a pintura de Da Vinci ou, antes, de Rafael.
Diego Maradona é de outra cepa. Baixinho, explosivo, irremediavelmente canhoto, só poderia vencer se renunciasse ao modelo clássico e buscasse por linhas tortas sua própria geometria.
Assim, fez do desequilíbrio e da falta a sua força. Por não chutar com o pé direito, desenvolveu uma esquerda capaz de prodígios. Por não conseguir avançar em linha reta, traçou arabescos em direção ao gol.
Por não ter a serenidade dos soberanos, foi ser "gauche" na vida: o que grita impropérios, o que perturba a paz, o que se rebela, o inimigo do rei.
Se Pelé é o clássico, Maradona é o barroco.
Se Pelé é Rafael, Maradona é Caravaggio.
Ambos enriqueceram o mundo.
Ambos merecem respeito e gratidão. E-mail: jgcouto@uol.com.br


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