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FUTEBOL
Sem esperar pelo desfecho de polêmica sobre a questão, advogada de sindicato já conseguiu "libertar" 70 jogadores
"Nabuco da bola" antecipa fim do passe
FÁBIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL
A atividade da advogada Gislaine Nunes, 32, poderia ser comparada, no mundo do futebol, à eficiente antecipação de um zagueiro sobre seu adversário.
O debate em torno do passe vive
um momento crucial -26 de
março é a data prevista para a sua
extinção, mas, por causa de um
forte lobby dos grandes clubes,
provavelmente o prazo será adiado-, só que Gislaine não esperou
pelo desfecho.
Desde março de 1998, quando
entrou em vigor a Lei Pelé, ela
contraria a tese de que os jogadores só deixarão de ser propriedades dos clubes quando o passe for
oficialmente extinto.
Servindo ao Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São
Paulo desde 1996, Gislaine guarda
em uma pasta surrada 96 sentenças de passes liberados.
Desse total, 70 jogadores já obtiveram o passe em definitivo.
Para alcançar tamanho êxito, a
advogada se utiliza de brechas na
própria Lei Pelé e da Constituição
Federal.
Embora acumule vitórias desde
98, só a partir do ano passado é
que Gislaine ganhou notoriedade,
defendendo atletas de clubes
grandes, como o volante Reidner
("libertado" do Botafogo), o zagueiro Márcio Santos (Santos), o
goleiro Ronaldo (Fluminense) e o
lateral-direito Vítor (Cruzeiro).
Anteontem, entrou com uma
ação na Justiça do Trabalho do
Rio para liberar o passe de Juninho Pernambucano, do Vasco,
sob a alegação de que o meia tem
salários atrasados, jamais teve recolhido seu FGTS e está sem receber remuneração.
Na semana em que concedeu
esta entrevista à Folha, no mês
passado, Gislaine se gabava de um
feito impressionante. "Bati um recorde. Em uma semana, liberei
quatro passes", comemorava, referindo-se às sentenças favoráveis
a Aristizábal e Montesini (São
Paulo), Gilmar (Corinthians) e
Bia (Bragantino).
Em dezembro passado, ela falou
no 1º Encontro Nacional sobre
Legislação Esportivo-Trabalhista
promovido pelo TST (Tribunal
Superior do Trabalho) em Brasília. Era uma das poucas mulheres
numa reunião que teve a presença
do ex-presidente da Fifa João Havelange, do presidente da CBF,
Ricardo Teixeira, e de Fábio Koff,
presidente do Clube dos 13, entidade que encara a advogada como uma pedra no sapato.
Natural de Bauru (SP), cidade
na qual se formou, pela Instituição Toledo de Ensino, Gislaine
tem dentro de casa um estímulo
ao seu trabalho: é casada com um
ex-jogador, Evandro, lateral-esquerdo que defendeu o Coritiba e
a Ponte Preta, entre outros clubes.
Chamada por alguns de "princesa Isabel do futebol", a advogada rejeita o título, considerando-o
exagerado.
Com um pouco mais de modéstia, mas nem tanto, Gislaine afirma que está mais próxima de Joaquim Nabuco, o abolicionista
pernambucano que escandalizou
a sociedade escravocrata do século 19 ao atuar como advogado de
defesa de um escravo acusado de
duplo homicídio.
Folha - Como a sra. começou a liberar passes de jogadores?
Gislaine Nunes - A Lei Pelé foi
publicada em 26 de março de 98.
No dia 28, entrei com uma ação
na Justiça do Trabalho . O juiz ficou surpreso e perguntou: "Você
estava na boca do forno, só esperando a lei sair?". A primeira vitória foi do goleiro Alexandre Buzetto, cujo passe pertencia ao Comercial de Ribeirão Preto.
Folha - Em que a sra. baseia as
suas ações, já que, oficialmente, o
passe ainda está em vigor?
Gislaine - Principalmente em
dois elementos. Um é o artigo 31
da Lei Pelé, que prevê punições
para a mora salarial, atraso no recolhimento do FGTS, não-pagamento de décimo-terceiro, férias
e abono. O outro está no artigo 5º,
inciso 13, da Constituição ("É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas
as qualificações profissionais que
a lei estabelecer"). A Lei Pelé é um
marco para o futebol brasileiro. É
a carta de alforria dos atletas,
trouxe prazos e regras para eles.
Os dirigentes dizem que ela veio
acabar com o futebol, mas veio
para acabar com os absurdos que
eles faziam.
Folha - A sra. sempre aceita os casos dos jogadores que procuram o
sindicato?
Gislaine - Quando sinto que um
jogador está querendo prejudicar
um clube que faz tudo correto, ele
não tem vez comigo. Existem
condições para que o atleta consiga o passe. Entramos com uma
ação se o clube não está cumprindo as obrigações trabalhistas e
constitucionais, se incorre em irregularidades prevista na Lei Pelé.
Alerto os atletas que eles vão sofrer pressão dos dirigentes. Jogadores de seleção vêm me procurar, mas desistem de pegar o passe
com medo de retaliação. Mas
nunca tive uma liminar cassada.
Folha - A sra. só atende atletas
sindicalizados e de São Paulo?
Gislaine - Trabalho para o Brasil
todo. Já liberei atletas do Bahia, do
Atlético-PR... Atletas que não são
sindicalizados eu atendo particularmente, mas não há diferenças.
Folha - O que a sra. sente ao liberar o passe de um jogador?
Gislaine - Quando pego um passe, tenho prazer em apanhar o
mandado judicial, levar na Federação Paulista de Futebol, na CBF,
entregar na mão do dirigente e dizer: está aqui a Lei Pelé.
Folha - E qual é a reação deles?
Gislaine - Eles nem olham na minha cara. Um advogado do São
Paulo disse outro dia que ia mandar erguer uma estátua em minha
homenagem, pois estou acabando com o futebol brasileiro.
Folha - A sra. já sofreu ameaças?
Gislaine - Não, não (risos).
Folha - A sra. tem medo de falar?
Gislaine - Já fui ameaçada, mas
não vou falar. Não gosto nem de
lembrar, não vale a pena.
Folha - A sra. acredita que a data
para a extinção do passe (26 de
março) será mantida?
Gislaine - Preciso acreditar que
será, mas é difícil. O lobby dos clubes está muito forte.
Folha - O que a sra. responde aos
que dizem que o fim do passe seria
a ruína do futebol, pois os clubes
deixariam de investir para formar
jogadores?
Gislaine - Não vejo onde causaria ruína. Como toda profissão,
tem que haver uma peneirada no
futebol. Tem muitos jogadores
que se acham excelentes atletas e
não são. Vai ter que haver uma separação, mas os bons ficarão. Mas
não há diferença em você ter ou
não o passe. O clube vai negociar
o jogador da mesma forma e ainda terá preferência na renovação
contratual, o atleta vai ganhar de
uma maneira correta. Todo mundo terá chance de sair com lucro.
Folha - Como a sra. analisa o caso
de Ronaldinho?
Gislaine - É complicado, não estou acompanhando. Caso o passe
seja mesmo extinto em 26 de março, realmente ele vai estar livre.
Não tem como o Grêmio segurá-lo, a não ser que a lei não passe.
Folha - O advogado Heraldo Panhoca (especialista em legislação
esportiva, um dos consultores na
redação da Lei Pelé) presta alguma
consultoria ao sindicato?
Gislaine - Não. Quando tenho alguma dúvida, em um caso muito
complexo, recorro a ele, que é
uma pessoa ponderada e experiente. São raras as vezes em que
recorro, mas sempre digo: ele é
meu mestre, me ensinou tudo.
Folha - O que acha de ser chamada de "princesa Isabel do futebol"?
Gislaine - Não sou tanto assim, o
que é isso. Procuro ajudar, mas
quem às vezes são princesas Isabéis são os juízes. Estou mais para
Joaquim Nabuco.
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