São Paulo, domingo, 11 de março de 2001

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FUTEBOL

Sem esperar pelo desfecho de polêmica sobre a questão, advogada de sindicato já conseguiu "libertar" 70 jogadores

"Nabuco da bola" antecipa fim do passe

FÁBIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL

A atividade da advogada Gislaine Nunes, 32, poderia ser comparada, no mundo do futebol, à eficiente antecipação de um zagueiro sobre seu adversário.
O debate em torno do passe vive um momento crucial -26 de março é a data prevista para a sua extinção, mas, por causa de um forte lobby dos grandes clubes, provavelmente o prazo será adiado-, só que Gislaine não esperou pelo desfecho.
Desde março de 1998, quando entrou em vigor a Lei Pelé, ela contraria a tese de que os jogadores só deixarão de ser propriedades dos clubes quando o passe for oficialmente extinto.
Servindo ao Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo desde 1996, Gislaine guarda em uma pasta surrada 96 sentenças de passes liberados.
Desse total, 70 jogadores já obtiveram o passe em definitivo.
Para alcançar tamanho êxito, a advogada se utiliza de brechas na própria Lei Pelé e da Constituição Federal.
Embora acumule vitórias desde 98, só a partir do ano passado é que Gislaine ganhou notoriedade, defendendo atletas de clubes grandes, como o volante Reidner ("libertado" do Botafogo), o zagueiro Márcio Santos (Santos), o goleiro Ronaldo (Fluminense) e o lateral-direito Vítor (Cruzeiro).
Anteontem, entrou com uma ação na Justiça do Trabalho do Rio para liberar o passe de Juninho Pernambucano, do Vasco, sob a alegação de que o meia tem salários atrasados, jamais teve recolhido seu FGTS e está sem receber remuneração.
Na semana em que concedeu esta entrevista à Folha, no mês passado, Gislaine se gabava de um feito impressionante. "Bati um recorde. Em uma semana, liberei quatro passes", comemorava, referindo-se às sentenças favoráveis a Aristizábal e Montesini (São Paulo), Gilmar (Corinthians) e Bia (Bragantino).
Em dezembro passado, ela falou no 1º Encontro Nacional sobre Legislação Esportivo-Trabalhista promovido pelo TST (Tribunal Superior do Trabalho) em Brasília. Era uma das poucas mulheres numa reunião que teve a presença do ex-presidente da Fifa João Havelange, do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, e de Fábio Koff, presidente do Clube dos 13, entidade que encara a advogada como uma pedra no sapato.
Natural de Bauru (SP), cidade na qual se formou, pela Instituição Toledo de Ensino, Gislaine tem dentro de casa um estímulo ao seu trabalho: é casada com um ex-jogador, Evandro, lateral-esquerdo que defendeu o Coritiba e a Ponte Preta, entre outros clubes.
Chamada por alguns de "princesa Isabel do futebol", a advogada rejeita o título, considerando-o exagerado.
Com um pouco mais de modéstia, mas nem tanto, Gislaine afirma que está mais próxima de Joaquim Nabuco, o abolicionista pernambucano que escandalizou a sociedade escravocrata do século 19 ao atuar como advogado de defesa de um escravo acusado de duplo homicídio.

Folha - Como a sra. começou a liberar passes de jogadores?
Gislaine Nunes -
A Lei Pelé foi publicada em 26 de março de 98. No dia 28, entrei com uma ação na Justiça do Trabalho . O juiz ficou surpreso e perguntou: "Você estava na boca do forno, só esperando a lei sair?". A primeira vitória foi do goleiro Alexandre Buzetto, cujo passe pertencia ao Comercial de Ribeirão Preto.

Folha - Em que a sra. baseia as suas ações, já que, oficialmente, o passe ainda está em vigor?
Gislaine -
Principalmente em dois elementos. Um é o artigo 31 da Lei Pelé, que prevê punições para a mora salarial, atraso no recolhimento do FGTS, não-pagamento de décimo-terceiro, férias e abono. O outro está no artigo 5º, inciso 13, da Constituição ("É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer"). A Lei Pelé é um marco para o futebol brasileiro. É a carta de alforria dos atletas, trouxe prazos e regras para eles. Os dirigentes dizem que ela veio acabar com o futebol, mas veio para acabar com os absurdos que eles faziam.

Folha - A sra. sempre aceita os casos dos jogadores que procuram o sindicato?
Gislaine -
Quando sinto que um jogador está querendo prejudicar um clube que faz tudo correto, ele não tem vez comigo. Existem condições para que o atleta consiga o passe. Entramos com uma ação se o clube não está cumprindo as obrigações trabalhistas e constitucionais, se incorre em irregularidades prevista na Lei Pelé.
Alerto os atletas que eles vão sofrer pressão dos dirigentes. Jogadores de seleção vêm me procurar, mas desistem de pegar o passe com medo de retaliação. Mas nunca tive uma liminar cassada.

Folha - A sra. só atende atletas sindicalizados e de São Paulo?
Gislaine -
Trabalho para o Brasil todo. Já liberei atletas do Bahia, do Atlético-PR... Atletas que não são sindicalizados eu atendo particularmente, mas não há diferenças.

Folha - O que a sra. sente ao liberar o passe de um jogador?
Gislaine -
Quando pego um passe, tenho prazer em apanhar o mandado judicial, levar na Federação Paulista de Futebol, na CBF, entregar na mão do dirigente e dizer: está aqui a Lei Pelé.

Folha - E qual é a reação deles?
Gislaine -
Eles nem olham na minha cara. Um advogado do São Paulo disse outro dia que ia mandar erguer uma estátua em minha homenagem, pois estou acabando com o futebol brasileiro.

Folha - A sra. já sofreu ameaças?
Gislaine -
Não, não (risos).

Folha - A sra. tem medo de falar?
Gislaine -
Já fui ameaçada, mas não vou falar. Não gosto nem de lembrar, não vale a pena.

Folha - A sra. acredita que a data para a extinção do passe (26 de março) será mantida?
Gislaine -
Preciso acreditar que será, mas é difícil. O lobby dos clubes está muito forte.

Folha - O que a sra. responde aos que dizem que o fim do passe seria a ruína do futebol, pois os clubes deixariam de investir para formar jogadores?
Gislaine -
Não vejo onde causaria ruína. Como toda profissão, tem que haver uma peneirada no futebol. Tem muitos jogadores que se acham excelentes atletas e não são. Vai ter que haver uma separação, mas os bons ficarão. Mas não há diferença em você ter ou não o passe. O clube vai negociar o jogador da mesma forma e ainda terá preferência na renovação contratual, o atleta vai ganhar de uma maneira correta. Todo mundo terá chance de sair com lucro.

Folha - Como a sra. analisa o caso de Ronaldinho?
Gislaine -
É complicado, não estou acompanhando. Caso o passe seja mesmo extinto em 26 de março, realmente ele vai estar livre. Não tem como o Grêmio segurá-lo, a não ser que a lei não passe.

Folha - O advogado Heraldo Panhoca (especialista em legislação esportiva, um dos consultores na redação da Lei Pelé) presta alguma consultoria ao sindicato?
Gislaine -
Não. Quando tenho alguma dúvida, em um caso muito complexo, recorro a ele, que é uma pessoa ponderada e experiente. São raras as vezes em que recorro, mas sempre digo: ele é meu mestre, me ensinou tudo.

Folha - O que acha de ser chamada de "princesa Isabel do futebol"?
Gislaine -
Não sou tanto assim, o que é isso. Procuro ajudar, mas quem às vezes são princesas Isabéis são os juízes. Estou mais para Joaquim Nabuco.


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