São Paulo, domingo, 11 de junho de 2000


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FOLHA OLIMPÍADA 2000
Projeto dos irmãos velejadores olímpicos Torben e Lars, que atende a cerca de 300 estudantes de regiões pobres de Niterói (RJ) e Vitória (ES), visa a popularização no Brasil do esporte elitista
Clã dos Grael rima vela com favela

RODRIGO BERTOLOTTO
ENVIADO ESPECIAL A NITERÓI

Até o ano passado, Gustavo Alves Barbosa, 13 anos, só prestava atenção se havia vento ou não quando empinava pipa na favela onde mora. Agora é um pouco diferente. Toda manhã, o garoto acorda e vai direto à janela para conferir o vento. Mas isso porque a brisa é sinal de que Gustavo poderá pegar seu barco e treinar o esporte preferido: a vela olímpica.
A história de Gustavo poderia trazer no enredo um prêmio acumulado de loteria ou uma herança de uma tia distante. Mas não tem nada disso. O menino continua morando no morro, e sua mãe segue trabalhando todos os dias como faxineira.
Gustavo é só um dos cerca de 300 estudantes da rede pública de ensino atendidos pelo Projeto Grael, iniciativa dos irmãos velejadores olímpicos Torben e Lars Grael com apoio das prefeituras de Niterói (Rio de Janeiro) e Vitória (Espírito Santo).
""Antes, eu ficava horas assistindo à TV ou ia para a rua arranjar briga. Mas encontrei um esporte que se encaixa comigo e, hoje, só penso em velejar", conta Gustavo.
De tanto insistir, o garoto acabou convencendo a mãe a comprar um barco de segunda mão, por R$ 350 divididos em três pagamentos.
Estacionado de favor ao lado de um galinheiro, o barco tem um nome que acaba sendo irônico: ""Dengue". Afinal, o morro do Preventório, em Niterói, é um foco da doença transmitida por mosquito -toda tarde, passa um carro fumegando o local para combater as larvas.
Já Fabiana da Silva, 11, tem uma história parecida. Filha de um pedreiro, a menina precisa explicar para suas amigas o esporte que pratica.
""Ninguém sabe o que significa iatismo. Quando eu falo em vela, minhas amigas brincam que só conhecem vela de luz. Mas, quando explico como é, muita gente se interessa", afirma Fabiana.
Apesar de desconhecido, o iatismo é a modalidade em que o Brasil foi mais bem-sucedido na história dos Jogos Olímpicos. O esporte náutico foi o que garantiu ao país o maior número de ouro: quatro, contra três do atletismo. No total de medalhas, é o segundo: 10, contra 11 para o atletismo.
Grande parte desse sucesso olímpico se deve ao clã dos Grael, que agora impulsiona a popularização da vela. Torben foi prata em Los Angeles-1984, bronze em Seul-1988 e ouro em Atlanta-1996. Lars conquistou dois bronzes, em Seul-1988 e em Atlanta-1996.

Carpintaria e sonho
Seus discípulos favelados já começam a colecionar troféus. O maior exemplo é Leonardo Rodrigues, 13, morador do bairro Engenhoca. Ele ficou com o título do Campeonato Estadual do Rio, na categoria estreante. Após a disputa de 12 regatas, Leonardo derrotou 49 adversários, 49 garotos de classe média e alta.
""Eles são muito acomodados, não têm garra. Eu fui campeão porque me esforcei muito para aprender", diz Leonardo.
O sucesso atraiu a atenção do elitista Iate Clube Icaraí, que contratou Leonardo e outros garotos de famílias carentes para completar sua flotilha de competição.
O sonho olímpico, porém, parece muito distante. ""Nem me imagino em uma Olimpíada. Fico feliz só de continuar velejando", afirma Leonardo.
Por isso, o Projeto Grael orienta seus alunos para que eles também tenham a vida náutica como uma opção profissional. O curso inclui, por exemplo, aulas de carpintaria naval. Se não sair um velejador, os garotos podem virar, pelo menos, construtores de embarcações.
Num país em que iniciativas comunitárias servem de paliativo para a tremenda injustiça social, a cidade de Niterói se especializou em associar suas celebridades esportivas a ações desse tipo. Além do Projeto Grael, há por lá o Projeto Fernanda Keller (triatlo) e o Projeto Gerson (futebol).

Acidente e volta por cima
Em Vitória (ES), a empreitada carrega mais dramaticidade. Afinal, o núcleo foi construído perto do local onde Lars Grael sofreu o acidente em que sua perna direita foi decepada.
Isso aconteceu em setembro de 1998, quando ele disputava uma regata, e a lancha Laguna L, pilotada pelo empresário Carlos Guilherme de Abreu e Lima Filho, atropelou o iatista.
No ano passado, a Justiça condenou o empresário a pagar pensão mensal de R$ 7.338,00, além do custeio de uma prótese no valor de R$ 50 mil.
""Não vejo Vitória como o lugar onde perdi minha perna. Mas onde ganhei a vida. A única coisa que desejo é bons ventos, porque o mar e o iatismo são para todos", disse Lars Grael na inauguração da filial capixaba.
As metáforas climáticas não são gratuitas: a modalidade é, entre todos os esportes olímpicos, a que mais exige conhecimento de meteorologia -além de noções de hidro e aerodinâmica.
Os garotos do projeto já decoraram que o vento sudeste é tão forte que não dá para velejar, enquanto o nordeste é o mais fraco. Já estão em seus cotidianos palavras como proa, popa, bombordo e boreste (frente, costas, lado esquerdo e direito do barco) e verbos específicos, como cambar (mudar de direção), arribar e orçar (fazer a curva).
Além disso, eles aprendem a marinharia. Ou seja, todas as atividades que envolvem nós, cabos, lonas, pesos e manobras. Após quatro meses de curso, a garotada ganha uma carteira de velejador amador.
Apesar dessa difusão, o iatismo continua sendo um esporte para poucos no Brasil, mesmo com a dimensão continental. Na Nova Zelândia, por exemplo, há muito mais praticantes -por lá, é normal uma família de classe média baixa ter em sua garagem um barco ao lado do carro de passeio.
O mesmo acontece na Dinamarca, terra dos antepassados dos Grael -o avô, o dinamarquês Preben Schmidt, foi quem ensinou Torben e Lars.
Os dois iatistas acabam participando pouco do dia-a-dia do Projeto Grael. Lars fica durante a semana inteira em Brasília, onde trabalha no Indesp (Instituto Nacional do Desenvolvimento do Desporto). Já Torben Grael está constantemente competindo fora do país.


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