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FOLHA OLIMPÍADA 2000
Projeto dos irmãos velejadores olímpicos Torben e Lars, que atende a cerca de 300 estudantes de regiões pobres de Niterói (RJ) e Vitória (ES), visa a popularização no Brasil do esporte elitista
Clã dos Grael rima vela com favela
RODRIGO BERTOLOTTO
ENVIADO ESPECIAL A NITERÓI
Até o ano passado,
Gustavo Alves Barbosa, 13 anos, só
prestava atenção se
havia vento ou não
quando empinava
pipa na favela onde mora. Agora é
um pouco diferente. Toda manhã, o garoto acorda e vai direto à
janela para conferir o vento. Mas
isso porque a brisa é sinal de que
Gustavo poderá pegar seu barco e
treinar o esporte preferido: a vela
olímpica.
A história de Gustavo poderia
trazer no enredo um prêmio acumulado de loteria ou uma herança de uma tia distante. Mas não
tem nada disso. O menino continua morando no morro, e sua
mãe segue trabalhando todos os
dias como faxineira.
Gustavo é só um dos cerca de
300 estudantes da rede pública de
ensino atendidos pelo Projeto
Grael, iniciativa dos irmãos velejadores olímpicos Torben e Lars
Grael com apoio das prefeituras
de Niterói (Rio de Janeiro) e Vitória (Espírito Santo).
""Antes, eu ficava horas assistindo à TV ou ia para a rua arranjar
briga. Mas encontrei um esporte
que se encaixa comigo e, hoje, só
penso em velejar", conta Gustavo.
De tanto insistir, o garoto acabou convencendo a mãe a comprar um barco de segunda mão,
por R$ 350 divididos em três pagamentos.
Estacionado de favor ao lado de
um galinheiro, o barco tem um
nome que acaba sendo irônico:
""Dengue". Afinal, o morro do
Preventório, em Niterói, é um foco da doença transmitida por
mosquito -toda tarde, passa um
carro fumegando o local para
combater as larvas.
Já Fabiana da Silva, 11, tem uma
história parecida. Filha de um pedreiro, a menina precisa explicar
para suas amigas o esporte que
pratica.
""Ninguém sabe o que significa
iatismo. Quando eu falo em vela,
minhas amigas brincam que só
conhecem vela de luz. Mas, quando explico como é, muita gente se
interessa", afirma Fabiana.
Apesar de desconhecido, o iatismo é a modalidade em que o Brasil foi mais bem-sucedido na história dos Jogos Olímpicos. O esporte náutico foi o que garantiu
ao país o maior número de ouro:
quatro, contra três do atletismo.
No total de medalhas, é o segundo: 10, contra 11 para o atletismo.
Grande parte desse sucesso
olímpico se deve ao clã dos Grael,
que agora impulsiona a popularização da vela. Torben foi prata em
Los Angeles-1984, bronze em
Seul-1988 e ouro em Atlanta-1996.
Lars conquistou dois bronzes, em
Seul-1988 e em Atlanta-1996.
Carpintaria e sonho
Seus discípulos favelados já começam a colecionar troféus. O
maior exemplo é Leonardo Rodrigues, 13, morador do bairro
Engenhoca. Ele ficou com o título
do Campeonato Estadual do Rio,
na categoria estreante. Após a disputa de 12 regatas, Leonardo derrotou 49 adversários, 49 garotos
de classe média e alta.
""Eles são muito acomodados,
não têm garra. Eu fui campeão
porque me esforcei muito para
aprender", diz Leonardo.
O sucesso atraiu a atenção do
elitista Iate Clube Icaraí, que contratou Leonardo e outros garotos
de famílias carentes para completar sua flotilha de competição.
O sonho olímpico, porém, parece muito distante. ""Nem me imagino em uma Olimpíada. Fico feliz só de continuar velejando",
afirma Leonardo.
Por isso, o Projeto Grael orienta
seus alunos para que eles também
tenham a vida náutica como uma
opção profissional. O curso inclui,
por exemplo, aulas de carpintaria
naval. Se não sair um velejador, os
garotos podem virar, pelo menos,
construtores de embarcações.
Num país em que iniciativas comunitárias servem de paliativo
para a tremenda injustiça social, a
cidade de Niterói se especializou
em associar suas celebridades esportivas a ações desse tipo. Além
do Projeto Grael, há por lá o Projeto Fernanda Keller (triatlo) e o
Projeto Gerson (futebol).
Acidente e volta por cima
Em Vitória (ES), a empreitada
carrega mais dramaticidade. Afinal, o núcleo foi construído perto
do local onde Lars Grael sofreu o
acidente em que sua perna direita
foi decepada.
Isso aconteceu em setembro de
1998, quando ele disputava uma
regata, e a lancha Laguna L, pilotada pelo empresário Carlos Guilherme de Abreu e Lima Filho,
atropelou o iatista.
No ano passado, a Justiça condenou o empresário a pagar pensão mensal de R$ 7.338,00, além
do custeio de uma prótese no valor de R$ 50 mil.
""Não vejo Vitória como o lugar
onde perdi minha perna. Mas onde ganhei a vida. A única coisa
que desejo é bons ventos, porque
o mar e o iatismo são para todos",
disse Lars Grael na inauguração
da filial capixaba.
As metáforas climáticas não são
gratuitas: a modalidade é, entre
todos os esportes olímpicos, a que
mais exige conhecimento de meteorologia -além de noções de
hidro e aerodinâmica.
Os garotos do projeto já decoraram que o vento sudeste é tão forte que não dá para velejar, enquanto o nordeste é o mais fraco.
Já estão em seus cotidianos palavras como proa, popa, bombordo
e boreste (frente, costas, lado esquerdo e direito do barco) e verbos específicos, como cambar
(mudar de direção), arribar e orçar (fazer a curva).
Além disso, eles aprendem a
marinharia. Ou seja, todas as atividades que envolvem nós, cabos,
lonas, pesos e manobras. Após
quatro meses de curso, a garotada
ganha uma carteira de velejador
amador.
Apesar dessa difusão, o iatismo
continua sendo um esporte para
poucos no Brasil, mesmo com a
dimensão continental. Na Nova
Zelândia, por exemplo, há muito
mais praticantes -por lá, é normal uma família de classe média
baixa ter em sua garagem um barco ao lado do carro de passeio.
O mesmo acontece na Dinamarca, terra dos antepassados
dos Grael -o avô, o dinamarquês
Preben Schmidt, foi quem ensinou Torben e Lars.
Os dois iatistas acabam participando pouco do dia-a-dia do Projeto Grael. Lars fica durante a semana inteira em Brasília, onde
trabalha no Indesp (Instituto Nacional do Desenvolvimento do
Desporto). Já Torben Grael está
constantemente competindo fora
do país.
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