São Paulo, quinta-feira, 13 de junho de 2002

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TONI NEGRI

O esporte moral, mas também poético

Quando um esporte torna-se uma paixão tão difundida e profunda como conseguiu o futebol, isso interessa ao poder.
Os imperadores romanos já sabiam disso, o circo era o futebol da época. Mas um esporte não é simplesmente um momento de liberação para cidadãos infelizes e uma compensação lúdica dos sofrimentos cotidianos. Em suma, um remédio social.
O esporte pode ser pensado também como uma ação positiva para a manutenção da ordem pública. Pode, portanto, se transformar em instrumento de organização e adestramento das massas, ou seja, aquilo que os soberanos absolutistas do século 18 chamavam uma "ação de polícia".
Em alguns países europeus, americanos, asiáticos e africanos é em torno do futebol que acaba se desenvolvendo boa parte da reflexão sobre a relação entre esporte e polícia.
Em que sentido? O futebol tem a vantagem de ser um esporte moral -é difícil compreender como um jogador de futebol possa se drogar, afinal, essa ação soma pouco à dinâmica do jogo (Maradona ensina). É árduo, quase impossível, por outro lado, pensar na corrupção no jogo, na falsificação de resultados etc.
Eis, então, os exemplos edificantes. Não é só isso, porém, que interessa ao soberano. A oportunidade que se oferece é a de tomar o futebol como paradigma da ordem social, o jogo dos chutes como um "tipo ideal" da constituição (física e moral) de um país. Seja pelo lado positivo ou pelo negativo.
Do lado positivo: na medida em que em torno do futebol podem se materializar as supostas virtudes de um povo (a inventividade brasileira, a astúcia italiana, a disciplina alemã, o dinamismo esnobe dos ingleses).
Do lado negativo: as partidas, que podem virar receptáculos da violência popular, se oferecem como terreno ideal para demonstrar quanto é necessário o poder da polícia.
Juntemos a estas considerações banais algumas outras reflexões. Há um grande jornalista esportivo na Itália, Gianni Brera, que conseguiu traçar em seus artigos um espécie de panorama representando o desenvolvimento italiano do pós-guerra até o triunfo capitalista dos anos 60. Traçou também (de forma subliminar) o desejo de grupos que não se aproximavam do poder, que combatiam o capitalismo e, mesmo assim, viviam.
Não se tratava, portanto, para Brera, de reduzir os atores do futebol em uma tensão unidimensional da comunidade, do orgulho nacional, da aventura quase imperialista quando jogava a seleção italiana.
Tratava-se sobretudo de mostrar, no futebol, como os oprimidos poderiam tomar consciência, se emancipar e se rebelar.
Com Brera, o jornalismo esportivo, de dispositivo de polícia, se abre, de repente, para uma representação das classes subalternas. Hoje, se o futebol é a imagem destas classes, como poderá indicar o movimento da multidão uma esperança, um novo salto adiante? Não estaríamos sendo exigentes demais se pedíssemos a nós mesmos que produzíssemos um movimento político que fosse feito da elegância do toque de bola (democrático) de Ronaldo, ou do sprint (socialista) de Vieri.
O que não dá mesmo para pedir para o próximo campeão do mundo é que levantem seus punhos proletários como fizeram os afro-americanos na Olimpíada de 1968.
Não, de verdade, não queremos cerimônias.
Para mim, já me chateia ouvir o rumor daqueles anos nacionalistas. O fato é que, como contava Brera, bastam grandíssimos lances e belíssimos jogos para restituir a esperança de ser, nós todos, uma multidão, no mundo, fraternalmente. Porque o futebol é essa poesia política...


Toni Negri, 69, filósofo italiano, é autor de ""Império", entre outros

Tradução de Rodrigo Bertolotto




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