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TONI NEGRI
O esporte moral, mas também poético
Quando um esporte torna-se uma paixão tão
difundida e profunda
como conseguiu o futebol, isso interessa ao poder.
Os imperadores romanos já sabiam disso, o circo era o futebol
da época. Mas um esporte não é
simplesmente um momento de liberação para cidadãos infelizes e
uma compensação lúdica dos sofrimentos cotidianos. Em suma,
um remédio social.
O esporte pode ser pensado
também como uma ação positiva
para a manutenção da ordem
pública. Pode, portanto, se transformar em instrumento de organização e adestramento das massas, ou seja, aquilo que os soberanos absolutistas do século 18 chamavam uma "ação de polícia".
Em alguns países europeus,
americanos, asiáticos e africanos
é em torno do futebol que acaba
se desenvolvendo boa parte da reflexão sobre a relação entre esporte e polícia.
Em que sentido? O futebol tem
a vantagem de ser um esporte
moral -é difícil compreender
como um jogador de futebol possa se drogar, afinal, essa ação soma pouco à dinâmica do jogo
(Maradona ensina). É árduo,
quase impossível, por outro lado,
pensar na corrupção no jogo, na
falsificação de resultados etc.
Eis, então, os exemplos edificantes. Não é só isso, porém, que
interessa ao soberano. A oportunidade que se oferece é a de tomar o futebol como paradigma
da ordem social, o jogo dos chutes
como um "tipo ideal" da constituição (física e moral) de um
país. Seja pelo lado positivo ou
pelo negativo.
Do lado positivo: na medida em
que em torno do futebol podem se
materializar as supostas virtudes
de um povo (a inventividade brasileira, a astúcia italiana, a disciplina alemã, o dinamismo esnobe dos ingleses).
Do lado negativo: as partidas,
que podem virar receptáculos da
violência popular, se oferecem como terreno ideal para demonstrar quanto é necessário o poder
da polícia.
Juntemos a estas considerações
banais algumas outras reflexões.
Há um grande jornalista esportivo na Itália, Gianni Brera, que
conseguiu traçar em seus artigos
um espécie de panorama representando o desenvolvimento italiano do pós-guerra até o triunfo
capitalista dos anos 60. Traçou
também (de forma subliminar) o
desejo de grupos que não se aproximavam do poder, que combatiam o capitalismo e, mesmo assim, viviam.
Não se tratava, portanto, para
Brera, de reduzir os atores do futebol em uma tensão unidimensional da comunidade, do orgulho nacional, da aventura quase
imperialista quando jogava a seleção italiana.
Tratava-se sobretudo de mostrar, no futebol, como os oprimidos poderiam tomar consciência,
se emancipar e se rebelar.
Com Brera, o jornalismo esportivo, de dispositivo de polícia, se
abre, de repente, para uma representação das classes subalternas.
Hoje, se o futebol é a imagem destas classes, como poderá indicar o
movimento da multidão uma esperança, um novo salto adiante?
Não estaríamos sendo exigentes
demais se pedíssemos a nós mesmos que produzíssemos um movimento político que fosse feito da
elegância do toque de bola (democrático) de Ronaldo, ou do
sprint (socialista) de Vieri.
O que não dá mesmo para pedir para o próximo campeão do
mundo é que levantem seus punhos proletários como fizeram os
afro-americanos na Olimpíada
de 1968.
Não, de verdade, não queremos
cerimônias.
Para mim, já me chateia ouvir
o rumor daqueles anos nacionalistas. O fato é que, como contava
Brera, bastam grandíssimos lances e belíssimos jogos para restituir a esperança de ser, nós todos,
uma multidão, no mundo, fraternalmente. Porque o futebol é essa
poesia política...
Toni Negri, 69, filósofo italiano,
é autor de ""Império", entre outros
Tradução de Rodrigo Bertolotto
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