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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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A história de Gustavo Borges, que encerra mês que vem a mais premiada trajetória de um brasileiro em Pan-Americanos

Culpa da sunga

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

Pirulito aprumou-se com cautela para a competição. Sabia que havia treinado muito bem naquele ano de 1985 e poderia chegar ao pódio. Saltou do bloco e começou a nadar, mas, logo nos primeiros metros, percebeu que o cordão de sua sunga havia arrebentado.
"Ninguém vai me ver pelado", pensou. Então, antes de completar a metade da prova, agarrou o calção com uma mão e se arrastou, mambembe, até completar os 50 m livre. Não conseguiu um lugar entre os três melhores.
A cena que poderia traumatizar um garoto de 12 anos virou o talismã da carreira de Gustavo Borges.
Antes de cada torneio que disputa, o atleta brasileiro mais premiado em Jogos Pan-Americanos rememora o dia em que protagonizou o inusitado acontecimento e encontra nele um incentivo para guiar suas performances.
"Percebi naquela competição que precisaria ultrapassar grandes dificuldades para me tornar um bom atleta. Aprendi o valor da superação e conservei isso na memória", diz o nadador.
Memória que, além dos pitorescos casos do início de sua trajetória, começou recentemente a ressuscitar todas as minúcias dos 20 anos de vida nas piscinas. O recorde de 15 medalhas obtidas em três Pan-Americanos, os quatro pódios olímpicos, os adversários mais aguerridos. Tudo está, nesse momento, voltando à tona.
E o saudosismo se justifica: no mês que vem, em Santo Domingo (República Dominicana), Borges, 30, apelidado de Pirulito na infância por causa do corpo esguio e da cabeça avantajada, vai nadar seu derradeiro Pan-Americano.
"É um momento importante. Será meu último Pan. Tenho certeza de que posso conseguir pelo menos mais duas medalhas e aumentar meu recorde", afirma.
Borges alcançou a marca de 15 medalhas em Winnipeg (CAN), há quatro anos, após amealhar três ouros, uma prata e um bronze. Ultrapassou o mesa-tenista Claudio Kano, morto em 1996, que somou 12 insígnias em Pans.
Ainda não é, porém, uma despedida oficial das piscinas. Ele quer se manter treinando até os Jogos de Atenas-2004, para ser um dos integrantes do revezamento 4x100 m livre. "Mas só vou se o Brasil tiver condições de ficar entre os três melhores", disse.
Gustavo França Borges nasceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, em dezembro de 1972.
Um dia após o nascimento, foi com os pais, Jovino e Diva, para Ituverava (413 km ao norte da capital). Lá, começou a nadar, por volta dos dez anos. "Ele era afinadíssimo. Apesar de ser bem grande, conseguia coordenar todos os movimentos com perfeição", recorda Ivana Guaitoli, professora que ensinou Borges a nadar.
Nessa época, Pirulito acompanhava deslumbrado os passos de outro nadador do interior. Ricardo Prado, um atarracado rapaz de Andradina que chegou ao posto de vice-campeão olímpico e recordista mundial dos 400 m medley na década de de 80, era referência para o jovem Borges. "Eu tinha óculos, touca, tudo dele."
Os resultados das primeiras competições foram animadores, e Borges preferiu abandonar Ituverava em busca de melhores condições de treinamento. Nadou em Franca em 1986 e seguiu para São Carlos em 1988. Somente em 1989 chegou a São Paulo.
"Sair de casa aos 15 anos foi muito difícil. Eu precisava arrumar tempo para estudar e nadar e não contava com os pais do meu lado." Nas andanças pelo interior, sempre longe da família, ele também deu suas escorregadas.
"Um dia marcamos a saída para uma viagem a São Paulo às 5h. Na hora marcada, entrei no ônibus e mandei tocar. Quando chegamos a São Paulo, vi que o Borges não tinha nos acompanhado. Ninguém mandou perder a hora", conta Maurício Frajácomo, o Piscinão, seu técnico em São Carlos.

Rumo ao topo
Incidentes à parte, o atleta chegou ao Pinheiros em 1989 como uma grande promessa. Após um curto período na capital, decidiu seguir os passos de outros nadadores renomados, como o próprio Prado, e foi para os EUA.
"No exterior havia estrutura para que eu pudesse conciliar natação de alta qualidade e estudo."
Borges cursou o High Scholl -equivalente no Brasil ao ensino médio- na Bolles, em Jacksonville (Flórida). Lá, treinado por Greg Troy, o rapagão de 2,04 m e 95 kg ganhou o status de estrela.
No Pan de Havana-1991, subiu cinco vezes no pódio e entrou pela primeira vez no ranking dos "top 5" do mundo nos 100 m livre.
Um ano depois, em Barcelona, disputou sua primeira Olimpíada. "Fiquei muito nervoso. Um dia antes dos 200 m livre, minha primeira prova, fui oito vezes ao banheiro e só dormi às 3h da manhã", lembra. A tensão passou e, no evento seguinte, os 100 m livre, terminou com a prata.
Borges estudou economia na Universidade de Michigan e, paralelamente aos estudos, continuou a preencher seu quadro de medalhas. Vieram mais cinco no Pan de Mar del Plata em 1995, duas nos Jogos de Atlanta-1996 e outras cinco em Winnipeg.
Nos últimos anos, passou a dividir o tempo da natação com os afazeres do lar. Em 1998, Borges casou-se com a espanhola Barbara Franco. Tiveram dois filhos: Gustavo, 4, e Gabriela, 1.
Se dá como certa sua aposentadoria após Atenas, Borges já pensa em outra forma de perpetuar seu nome na natação. "Quando estamos na piscina, peço para o Gustavinho nadar igual ao papai. Ele já faz todos os movimentos. Acho que leva jeito para a coisa."


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