São Paulo, quinta, 13 de agosto de 1998

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Utilidade e prazer dos dicionários (de futebol)

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Guimarães Rosa disse mais de uma vez que seu grande sonho de escritor era fazer um dicionário. Não se tratava de uma "boutade". Há no mundo poucas coisas mais belas e interessantes que um dicionário.
Pois bem. Essa introdução vem a propósito do relançamento, em edição atualizada e ampliada, de um livro clássico: "Dicionário Popular de Futebol - O AB das Arquibancadas", de Leonam Penna (Editora Nova Fronteira).
Em suas 240 páginas, misturam-se expressões de uso ainda muito corrente ("cartola", "lanterninha", "tapetão", "banheira", "bicicleta") e outras já caídas em desuso, pelo menos em São Paulo.
São estas últimas que tornam delicioso esse dicionário.
Ficamos sabendo, por exemplo, que "leonor" era o tratamento carinhoso dado à bola pelos jogadores do passado, e que "lepra" é termo usado para designar o perna-de-pau ou cabeça-de-bagre (expressões, aliás, que também constam do dicionário).
"Malaquias", por sua vez, é o mesmo que "homem da mala", o sujeito que suborna juízes ou jogadores, supostamente levando o dinheiro numa mala.
Com frequência os verbetes vêm acompanhados por uma explicação da imagem sugerida. Por exemplo: usa-se "banheira" para designar a situação de impedimento porque o jogador sem marcação está à vontade, relaxado, gostosão.
Outro livro do gênero publicado recentemente é o catatau de 450 páginas "Dicionário de Futebol", realizado pela Fifa. Foi distribuído como brinde aos jornalistas que cobriam a Copa do Mundo da França. Não sei se será comercializado em livrarias.
De todo modo, é uma obra excepcional. Contém as principais expressões do esporte em quatro línguas: inglês, francês, espanhol e alemão.
Sua maior beleza está em mostrar as diferentes imagens que cada povo cria a partir de uma mesma jogada ou situação.
Por exemplo, a cabeçada em que o jogador tem de saltar para baixo para atingir a bola -que nós chamamos de "peixinho"- é chamada pelos espanhóis de "palomita" (pombinha). Quer dizer, onde os brasileiros viram um peixe, os espanhóis (ou hispano-americanos) viram uma pomba.
Os ingleses, mais pragmáticos, chamam o lance, simplesmente, de "cabeçada mergulhadora" ("diving header"), o mesmo acontecendo com os franceses ("tête plongeante").
Já os alemães comparecem com um expressivo e ameaçador "Kopfballtorpedo". Não é difícil saber o que significa: "Kopf" é cabeça, "Ball" é bola e "Torpedo" deve ser torpedo mesmo.
No fundo, é mais ou menos como decifrar imagens nas nuvens: cada um vê o que seu espírito está propenso a ver (pombas, peixes, torpedos).
Pensadas assim, essas diferenças linguísticas talvez digam muita coisa a respeito dos distintos temperamentos e sensibilidades dos povos.
Pena que o dicionário da Fifa não contenha a explicação da origem das expressões. Só assim poderíamos saber, por exemplo, por que diabos os "hispanohablantes" chamam a bicicleta de "chilena".


E-mail: jgcouto@uol.com.br


José Geraldo Couto escreve às quintas


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