São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
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AUTOMOBILISMO
Piloto alemão afirma que não se importa com o jejum da Ferrari, elogia Senna e descarta correr na Indy
Schumacher despreza a velocidade
na F-1

ANDRÉ BISSCHOP
especial para a Folha

Saindo da difícil curva Bucine para a reta. Na metade do traçado, ele pisa no acelerador. O sol reflete na sua viseira. Michael Schumacher, 30, engata uma marcha mais alta. E outra. Ele vai mais rápido. Cada vez mais rápido.
É fascinante ver um ser humano conduzindo essa máquina pela pista de testes. A potência é desumana e a mente luta contra os momentos cinzentos, as frações de segundo em que o cérebro rende menos devido à força da gravidade.
O piloto afunda no assento e, se não estivesse preso por um cinto de segurança, seria arremessado do carro já na largada.
"Medo?", diz Schumacher, parecendo surpreso com a pergunta. "Quando falha um dos motores de seu avião, aí você fica com medo."
Ele sabe do que está falando. Passou pela experiência há algumas semanas, no seu jatinho particular. O pouso de emergência evitou que ele deixasse essa vida -"à qual sou muito agradecido", afirma.
Schumacher é um homem religioso, mas que se enerva bastante com motoristas que fazem manobras perigosas nas estradas. "Às vezes, isso me amedronta."
Em Mugello (circuito da Ferrari, no norte da Itália), não há mais ninguém na pista. Ele está simulando um GP de F-1: 52 voltas, três pit stops, 250 km. "Uma boa esticada", diz o bicampeão (94 e 95).
Ele é persistente. Quando o sol se põe e a temperatura cai para alguns graus abaixo de zero, continua completando voltas.
O rugido do motor faz os tímpanos coçarem. Novamente, o F399, modelo da Ferrari para o Mundial deste ano, passa a 300 km/h.
"Não é muito, a não ser que meus freios falhem", diz Schumacher, indagado sobre o que a velocidade significa para ele. "Mas a velocidade em si não me toca. Não ligo para a velocidade em que estou. Só quero ser o primeiro a cruzar a linha de chegada em uma corrida."
Ele concorda apenas em parte com os versos de Françoise Sagan (escritora francesa) que louvam as belezas da velocidade: "Mesmo se você estiver desesperadamente apaixonado por uma pessoa que não gosta de você, a 200 km/h esse sentimento fica em segundo plano; O sangue não circula tanto pelo coração, ele vai para suas extremidades, suas mãos, seus pés, suas retinas, que passam a ser as guardiãs de sua própria vida; É louco como seu corpo e suas sensações se tornam responsáveis por sua vida."
"Eu não sei", diz Schumacher, distraído. Os versos de Sagan são muito pomposos para ele.
"Você fala sobre velocidade, mas receio que não entenda o que é velocidade e o que seja estar em um F-1. Esses carros são feitos para atingir quase 500 km/h. É a mesma coisa que você sente quando está a 200 km/h em um carro de passeio. O entusiasmo começa na freada. Aí você tem que fazer sua aposta. Quem vai frear do lado de fora da curva, fechar a porta para você?"

Tese
Niki Lauda, tricampeão da F-1 (75, 77 e 84), divulgou sua teoria recentemente. Mesmo se o carro de Schumacher for três décimos de segundo mais lento por volta, ele ainda será dois ou três décimos mais rápido que seus oponentes.
A diferença estaria na maneira como ele faz as curvas, na introspecção e no arrojo que Schumacher mostra nas pistas.
"É só uma impressão, uma teoria dele", afirma o alemão. "De qualquer maneira, isso não foi verdade nos últimos dois anos."
Talvez, então, a diferença entre os melhores carros e sua Ferrari tenha sido maior que os dois décimos de segundo. "Você está certo. A diferença foi maior."
Ele não acredita, porém, que a defasagem tenha ficado restrita à velocidade. O McLaren de Mika Hakkinen tinha melhor aerodinâmica, era mais constante e fazia curvas melhor. O finlandês simplesmente tinha o melhor carro.
"No ano passado, precisávamos ter melhorado em muitos aspectos", continua Schumacher. "Especialmente no início da temporada, a Ferrari não era boa o suficiente. Só saímos dessa situação porque trabalhamos muito duro."
Na última temporada, todas as semanas Schumacher entrou no carro para testar os ajustes criados pelos engenheiros. Em algumas oportunidades, começava às 10h e não parava até as 22h.
Sua perseverança e perfeccionismo foram recompensados: ele conseguiu tantos pontos que o Mundial só foi decidido na última etapa. Schumacher ou Hakkinen.
No Japão, o alemão conseguiu o melhor tempo nos treinos e largou na pole. Ou parecia que ia largar.
Instantes antes do início da prova, Jarno Trulli (piloto italiano da Prost) teve problemas no motor. Todos esperaram o reinício do procedimento para a largada. A tensão era insuportável.
Schumacher na pole, Hakkinen logo atrás. Luz vermelha, os motores gritavam. Então Schumacher calmamente levantou o braço.
Por causa do atraso na largada, o motor e o câmbio estavam quentes demais para funcionar. Schumacher, então, foi transferido para a última posição do grid. E Hakkinen sagrou-se campeão.
"É melhor respeitar e aceitar", é tudo o que declara. Schumacher não gosta de comentar aquele GP.
História não significa nada para ele. "Nunca me interessei pelo passado. Por que teria que me importar com o jejum de títulos da Ferrari? O que isso quer dizer?"
Mas, obviamente, ele sabe bem que o último título ferrarista completa 20 anos. Jody Schekter foi o feliz responsável pela façanha.
Schumacher conheceu o sul-africano, mas disse não ter se impressionado. "Na verdade, nem chegamos a conversar direito."
Ele gostaria mesmo de encontrar Ayrton Senna, o melhor da história, na sua opinião. "Ele chegou perto do ideal, foi quase perfeito."
Schumacher não consegue imaginar um piloto mais consciente. Nem Hakkinen nem ele mesmo podem ser comparados a Senna. Mas, infelizmente, Senna está morto. Outra coisa sobre a qual Schumacher evita refletir.
"Você não deve nem pensar nessas coisas. Isso só vai te assombrar", diz o alemão.
Ele tenta esquecer o mais rápido possível os acidentes em que se envolveu. É preciso tocar nesse assunto com cuidado.
Uma vez, provocou um acidente com Damon Hill (Adelaide/94, sagrando-se campeão). Outra, bateu com Jacques Villeneuve (Jerez/97, mas foi punido com a perda dos pontos). Mas ambos eram seus concorrentes diretos pelo título.

Crítica
Certa vez, um jornal alemão escreveu o seguinte sobre Schumacher: "Durante a semana, ele joga partidas de futebol para ajudar crianças carentes. Nos finais de semana, joga com a vida de seus colegas de profissão."
Schumacher acha a descrição irreal, mas evita uma autodefinição. "Você não pode falar sobre você mesmo. Ninguém consegue."
Ele também evita usar -e discute- o rótulo de "pessoa pública".
"Quero ser um VIP para a minha família, para as pessoas que me querem por perto por razões sérias e não só porque sou um milionário ou uma celebridade. Fama e dinheiro não são tudo e não são minha meta final", declara o alemão.
"Eu vivo para o esporte. Automobilismo é a melhor coisa do mundo. Eu acho que faço isso para provar algo a mim mesmo. Nunca vou me comparar a outra pessoa. Estou muito satisfeito com o que já consegui da vida."
Ele mantém silêncio sobre sua vida particular. "Não vou poder dar um retrato exato de como sou. As pessoas que vivem ao meu redor poderiam fazer isso. Mas, para você, é uma pena que eles não vão falar nada. É um acordo que temos."
Então, o mundo tem que se satisfazer com alguns fatos vagos: ele mora na Suíça, tem uma casa na Noruega, uma coleção de carros esporte, um jatinho privado à sua disposição e joga em ligas amadoras de futebol dos dois países.
Frequentemente doa milhões de dólares para o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância.
O nome de sua mulher é Corinna, sua filha se chama Gina Maria e, dentro de um mês, seu filho deve estar nascendo.
Crianças são o fraco de Schumacher. Quando o assunto vem à tona, a entrevista muda de rumo.
"As crianças transformam você. Em alguns pontos, você se torna mais sério. Mas sempre fui um cara sério no esporte. Eu não faço loucuras e não abuso da sorte. Isso não me faria melhor, e o automobilismo não permite isso. O fato de ser pai não mudou essa minha atitude. Por outro lado, estou vivendo na lua, nas estrelas."

Risco
Schumacher diz que deixa de correr se a F-1 se tornar muito arriscada. "Não vou arriscar minha vida só porque gosto de correr. Se tivesse que me transferir para a Indy, para pilotar naqueles ovais, passando tão perto do muro, aí eu iria dizer: é isso, estou arriscando."
Segundo ele, a monotonia dos ovais é um perigo. "Os pilotos perdem a concentração, e as chances de acidente crescem. Mas eu gostaria que na F-1 a disputa fosse mais equilibrada, para que as ultrapassagens fossem frequentes. Eu gosto de uma briga, é o que faz as corridas serem excitantes."
Em Mugello, não há ninguém a ser ultrapassado. Em uma volta, logo após completar a Bucine, seus freios travam, criando uma nuvem de fumaça. Reduzir bruscamente de 250 km/h para 80 km/h é uma proeza. Os freios ainda estão incandescentes e o piloto pode ter sérios problemas se não for cuidadoso. Frear é uma lição difícil na F-1.
Schumacher decide encerrar seu treino do dia, satisfeito. "O novo carro é mais estável. É definitivamente melhor que o anterior."
E ele, claro, se considera o melhor piloto do mundo. "Eu não sei, realmente não sei. Parece que sou bom, mas ganhei essa reputação por ter sido um competidor forte nos últimos anos. Não toco o bumbo para mim mesmo. Nunca vou dizer que sou o melhor piloto."
Então, ele apenas faz as coisas melhor que os outros? "É uma combinação de fatores. Eu piloto rápido e amplio ao máximo as possibilidades que tenho. Em 94, eu tinha o melhor carro e fui campeão. Desde então, nunca mais tive o melhor carro, e mesmo assim consegui um título. Venci corridas simplesmente pela estratégia, fazendo três pit stops em vez de dois e lançando mão, na hora certa, de táticas traçadas pela equipe."
Schumacher é incansável. Agora são 18h30 em Mugello, está escuro.
Enquanto recebe os aplausos dos fãs que estiveram na pista até o fim do treino, ele aquece o volante de seu carro com um aparelho elétrico. A empunhadura não estava perfeita, seus dedos não estavam confortáveis. E, se você pode melhorar algo, é bom fazê-lo rápido.
Depois, sai e começa a cumprimentar os mecânicos. Seguem-se risadas e tapinhas nas costas. "Essa equipe é a melhor que existe", diz. "Só que ainda não conseguimos coroar tudo isso com um título."
Schumacher vai continuar com a Ferrari até 2002. "Estou confortável, mesmo sem o título. O importante é que estamos evoluindo."
Ele entra em seu carro esporte vermelho, estacionado atrás dos pits, e dirige até o aeroporto de Florença, onde seu jatinho o espera para levá-lo de volta à Suíça.


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