São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 2002

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WILL SELF

A triste volta do Deus da Anarquia

"Parece o Dia da Vitória", me disse um antigo editor, referindo-se às cenas no centro de Londres, depois da vitória inglesa por 1 a 0 sobre a Argentina na Copa. Ele tinha acabado de ir a um pub próximo a seu escritório, onde, segundo ele, em um dos espasmos de êxtase pós-jogo, uma garota atraente jogou-se em seu colo.
As referências ao V.E. (Victory in Europe, 8 de maio, o dia em que a guerra contra a Alemanha nazista terminou) não têm sentido gratuito ou irrelevante.
Passados 57 anos, o Dia da Vitória ainda é lembrado pelos londrinos como um desordenado bacanal, quando o Deus da Anarquia iluminou a cinzenta cidade, e nós, os ingleses, normalmente um povo reprimido, nos comportamos durante algumas vertiginosas horas como carinhosamente imaginamos que pessoas como... humm... os brasileiros se comportam a maior parte do tempo, copulando nas ruas em estado de avançada embriaguez.
De todo modo, foram essas as cenas, e a Cruz de São Jorge (uma bandeira particularmente feia, simplesmente uma descorada cruz vermelha sobre insípido fundo branco), que esteve estendida em quase todas as partes nas últimas semanas, agora está em "absolutamente" todas as partes.
Minha mulher, que foi ao centro da cidade instantes depois da inacreditável vitória, não chegou a ver cenas de renúncia sexual da multidão, mas presenciou casos quase tão chocantes quanto. Pessoas eram "amigáveis" com as outras -algo raro nesta cidade. Pessoas pareciam "felizes" -o que é ainda mais bizarro. A lembrança ao Dia da Vitória é apropriada porque, ao pressentir a vitória, o inglês torna-se marcial e triunfalista. O "Daily Star" teve o topete de manchetar "Gotcha!" (Te peguei!) na manhã seguinte ao jogo.
Fiel à natureza que havia delineado para você nas duas últimas semanas, consegui ficar felizmente afastado de tudo. Trabalhei em meu livro, dei atenção a meus filhos. Estava absolutamente seguro sobre a capacidade de a seleção inglesa fracassar.
Mais tarde, eu não me desapontaria. O empate sem gols com a Nigéria repetiu a tradição inglesa de pateticamente obter sucesso sem valor, mascarando-o como um triunfo.
David Beckham (cujo status na Inglaterra e no Japão paira em algum lugar entre William Shakespeare e Jesus Cristo) afirmou sobre tão justo resultado: "Os cínicos vão dizer que não jogamos bem e não fizemos muitos gols, mas nós nos classificamos e tivemos um comportamento excelente". Com licença! Você não precisa ser cínico para dizer isso -só realista. Não consigo imaginar o capitão de uma respeitável seleção sul-americana reivindicando que seja aclamado pelo bom comportamento, em vez de gols.
A dura verdade é que isso se ajusta com perfeição a minhas predições feitas na semana passada. Eles têm de fazer por merecer a derrota -e isso já aconteceu.
A seleção pode agora perder para a Dinamarca -ou avançar para ser completamente arrasada pelo Brasil- e vai manter a crença de que fez isso terrivelmente bem, porque se "comportou bem". A Inglaterra é a única nação que prefere perder bem a ganhar mal. O grande Robert Scott (que morreu estupidamente em sua viagem ao Pólo Sul, fracassando na tentativa de chegar lá primeiro). O patético norueguês Roald Amundsen (que chegou lá primeiro e voltou vivo, tendo a ousadia de ser estrangeiro).
Enquanto isso, em Moscou e São Petersburgo, os hooligans russos, inspirados nos ingleses, desatam sua fúria e matam um homem após a derrota de sua seleção para os japoneses.
Há uma teoria para ser procurada aqui, ligando violência esportiva e declínio imperial. Mas serei eu o homem certo para esse trabalho? Veja neste espaço.


Will Self, 38, é autor de "Cock and Bull" e "Quantity Theory of Insanity" e um dos mais importantes nomes da nova geração de escritores britânicos



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