São Paulo, domingo, 18 de abril de 2010

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Um craque improvável

Melhor do mundo, Messi precisou vencer as dúvidas que o seu corpo franzino provocava quando chegou à Espanha

ROBERTO DIAS
EM BARCELONA

Quando viu pela primeira vez o menino de 1,54 m, o argentino Horacio Gaggioli pensou: "É tão pequenininho que não pode jogar futebol". Era 17 de setembro de 2000, e Gaggioli estava no aeroporto El Prat, em Barcelona. Tinha ido buscar o compatriota de 13 anos, que chegava de Rosario com o pai.
Sua primeira impressão chocava-se com o que, como empresário, teria de fazer de ali em diante: convencer um dos maiores clubes do mundo de que o garoto podia, sim, jogar muito futebol, conforme lhe diziam seus sócios na Argentina.
Para Lionel Andrés Messi, provar seu domínio sobre a bola seria, como em toda a sua vida, a parte fácil. O que o melhor jogador do mundo teve que superar com ainda mais obstinação foram percalços outros que não as botinadas dos zagueiros.
Sobretudo a partir daquele dia em Barcelona, para viver o que ele mais tarde definiria como "anos complicados".
Do aeroporto, Messi foi ao hotel Catalonia Plaza, no pé da montanha de Montjuic. O hotel não tem registro dele. Messi, sim: uma foto em que aparece na janela, com o monumento da praça ao fundo. Uma lembrança de duas semanas de angústia à espera de avaliação.
Depois de impressionar os técnicos das divisões de base do time, ele precisava conquistar a aprovação de Carles Reixach, assistente do técnico Louis van Gaal e cético sobre os causos de craques infantis. E Reixach estava em Sydney, na Olimpíada. Pai e filho chegaram a decidir que voltariam a Rosario, mas o clube pediu que esperassem.
O dia decisivo chegou, e Reixach chegou atrasado. Mas subiu ao gramado justamente no momento em que o argentino fazia uma de suas demonstrações. O sinal verde pintou ali.
"Foi muito fácil. Qualquer técnico já via o que ele iria ser", conta Quimet Refé, então diretor técnico das categorias de base do Barcelona. "Muita gente diz que viu primeiro. Mas Messi não foi descoberto. Ele se descobriu sozinho."
Com o OK do clube, o argentino voltou a Rosario para preparar a mudança. Só que o OK não era tão OK assim.
"Havia uma nova diretoria que não tinha tanto interesse em jovens como tinha em buscar jogadores para o primeiro time", diz Jose Maria Minguel- la, sócio do clube que, na contratação de Messi, foi a ponte entre Gaggioli, o argentino do aeroporto, e Reixach, do Barça. "As prioridades eram outras. Queriam ganhar partidas logo."
Os problemas não paravam aí. Messi não se encaixava na política das divisões de base. O clube não costumava contratar estrangeiros. Menos ainda tão novos. Pelas regras, ele só poderia jogar na Catalunha.
O menino ficou dois meses na Argentina aguardando uma palavra mais séria do Barcelona. Seu pai, Jorge Messi, ameaçava oferecê-lo a outras equipes. Na Espanha, Gaggioli pressionava. Até que, durante um almoço, Reixach pediu um guardanapo a um garçom, escreveu que o clube se comprometia a contratar Messi e assinou. O documento está até hoje com Gaggioli, num cofre.
O próprio Barcelona, entretanto, ainda demoraria mais um mês para enviar um compromisso à família, depois de a diretoria exigir um relatório sobre a aposta que o clube faria. Reixach foi bem sucinto. Descreveu Messi como "acollonant" ("impressionante").
A bola estava devolvida para a família, que precisava decidir se também embarcaria na aposta. "Sentamos ao redor de uma mesa e conversamos. Todos estivemos de acordo. Sobretudo Lionel, que tinha muita vontade de ir", disse Jorge Messi em uma entrevista ao Canal +. Em fevereiro de 2001, pai, mãe e os quatros filhos desembarcaram em Barcelona.
O clube os alojou em um hotel próximo ao seu estádio, o Camp Nou. Como parte do acordo da contratação, arrumou um emprego para o pai de Messi. O argentino, ainda muito franzino, começou a treinar na equipe azul e grená.
Junto a isso, contudo, os problemas de Messi continuaram.
O Newell's Old Boys, seu clube na Argentina, recusava-se a enviar o documento de transferência do atleta, e a disputa foi parar na Fifa. Com documentação provisória e a limitação da regra para estrangeiros, entrou em campo e acabou se contundido com certa gravidade.
Longe dos gramados, a irmã mais nova do jogador, María Sol, chorava na escola por não compreender o catalão.
Quando chegaram as férias do verão europeu, a família retornou à Argentina e decidiu repensar seu futuro. Mãe e irmãos iriam ficar em casa. Messi bateu o pé: queria voltar ao Barcelona, e o pai foi com ele.
Pois tentar a carreira em seu país Messi já havia feito.
Ganhou uma bola aos quatro anos e, carregado pela avó, começou a jogar já no ano seguinte no Grandoli, um clube que ficava próximo a sua casa.
Na época, segundo descreveu sua mãe, era um garoto travesso. Que roubava no baralho. Que não gostava de ir à escola.
Queria mesmo era jogar bola. Do Grandoli ele se mudou para o complexo das Malvinas, o centro de treinamento do Newell's, principal clube de Rosario. Integrava uma equipe que ficou conhecida como "Máquina 87", uma referência ao ano de nascimento dos garotos e ao que faziam com os adversários.
Messi era o craque do time. Um de seus grandes amigos de infância contou que uma vez ele não apareceu para jogar a final de um torneio que premiava os campeões com bicicletas.
O time perdeu o primeiro tempo por 1 a 0. Messi tinha ficado trancado em casa, mas conseguiu sair a tempo de chegar para a segunda etapa e marcar os três gols do título.
Mas já aí havia outro problema que não os zagueiros. Aos nove anos, tinha só 1,27 m. Sua família procurou um médico em Rosario. O diagnóstico: o corpo de Messi não produzia hormônio de crescimento suficiente. Era preciso fazer um tratamento, que custava em torno de R$ 30 mil anuais, dinheiro que a família não tinha.
O pai buscou dinheiro na siderúrgica em que trabalhava. Conseguiu pagar as doses por dois anos. O próprio Messi aplicava as injeções. Era uma picada em cada perna.
O atacante tem hoje 1,69 m. "Ele teve uma resposta muito boa ao tratamento", afirma Diego Schwarzstein, o médico procurado pela família de Messi na cidade de Rosario.
O dinheiro para as doses, porém, voltou a faltar. Jorge Messi recorreu ao Newell's, que topou ajudar, mas não foi por muito tempo. Cansado de tanto bater na porta do clube, levou o filho para um teste no River Plate. Embora tenha se saído bem, o clube não quis negociar com o Newell's para ficar com Messi. Estava aberto o caminho para ele se transformar em um caso raro: um ídolo do futebol argentino que nunca passou por nenhum dos dois grandes clubes da capital.
O que talvez ajude a explicar a dupla imagem que tem hoje em seu país, de "Messi de cá" e "Messi de lá". O "de lá" começou a tomar forma em novembro de 2003. Na sua estreia no time principal do Barcelona, um amistoso com o Porto, tinha a camisa 14 e foi colocado em campo no segundo tempo pelo técnico Frank Rijkaard.
Messi chegou a ser sondado para se tornar de vez um "de lá", defendendo a seleção da Espanha. Os argentinos contra-atacaram. Organizaram dois jogos da seleção sub-20 e vestiram a promessa com a camisa albiceleste. Ele tem hoje dupla cidadania, mas, pela regra da Fifa, só pode defender a seleção pela qual já jogou.
Sua estreia como um "de cá" do time principal foi traumática: entrou em campo no segundo tempo de um amistoso contra a Hungria, foi expulso 40 segundos depois por dar uma cotovelada e passou o resto do jogo chorando do lado de fora.
Hoje, no Barcelona, é admirado pelo senso de equipe.
"Ele trabalha como os demais", disse o lateral Daniel Alves, o brasileiro mais próximo de Messi, depois de desfilar tabelinhas com o argentino na vitória sobre o La Coruña, na quarta. E o antídoto para isso? "Tem que estar bem posicionado. É um jogador muito difícil de marcar individualmente."
Na Espanha e no Brasil, somam-se vozes dizendo que os rivais lhe dão liberdade demais.
No Barcelona, Messi tem mais liberdade tática que alimentar. Guardiola o incentivou a trocar os churrascos pelos pescados, mas permite que num mesmo jogo ele se alimente em qualquer posição.
Na Argentina, a relação com Maradona é alvo de grande debate. Messi nasceu em 1987, depois do título mundial, do gol de mão e do gol do século. E idolatra o treinador. Mas os dois ainda não acharam uma maneira de reproduzir na seleção o jogo de Messi no Barça.
Não é um problema de agora. O atacante saiu da última Copa marcado por ter ficado no banco enquanto a equipe caía diante da Alemanha. No livro "Messi, el Nen que no Podia Créixer" (inédito no Brasil), o jornalista italiano Luca Caioli relata a sensação, naquela equipe argentina, de que Messi não respeitava a hierarquia e rituais internos, como o do mate. Tomado da Nike pela Adidas, teve sua imagem superexplorada, o que provocou ciúme no elenco.
Messi é hoje o jogador mais midiático do mundo, segundo estudo da Universidade de Navarra. Mas mantém a timidez de sempre. Costuma sair correndo em direção ao vestiário quando o juiz apita. Na definição do escritor inglês John Carlin, "extremamente difícil é pouco para definir quão atormentadoramente frustrante é o exercício de entrevistá-lo".
Tal característica só parece ser quebrada diante do PlayStation, uma de suas paixões. Messi diz abertamente que não gosta de ler. Nem demostra grande esforço em falar o catalão, orgulho do Barcelona.
Mas, com seus gols, conquistou a torcida do clube, que discute hoje se vive uma "messidependência" e que renovou seu contrato até 2016, impondo uma multa de 250 milhões a quem quiser tirá-lo do Camp Nou (uma cláusula batizada de "antiflorentino", em referência ao presidente do Real Madrid).
Enquanto isso, quando volta a Rosario, como no final de 2009, é obrigado a se explicar. "Faço o mesmo esforço pela seleção. Se não consegui mais até agora, não é porque não queira. Quero melhorar na seleção."
O bisavô de Messi emigrou da Itália para a Argentina no século 19. O hospital onde o jogador nasceu em Rosario homenageia um italiano conhecido dos brasileiros, Giuseppe Garibaldi, o herói de dois mundos. Messi já ganhou o Velho Mundo. Aos 22 anos, vai atrás, na Copa-2010, de conquistar o outro -o seu velho mundo.


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