São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 2000


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FUTEBOL
Quando o inferno é o céu

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Tudo é uma questão de ponto de vista: uns acham o inferno agradável porque tem um ótimo aquecimento central e belas mulheres, outros o acham um lugar infernal por causa do cheiro de enxofre. Com o céu é a mesma coisa: uns gostam por causa da tranquilidade, outros sentem falta da televisão.
O que para uns é alegria, para outros é tristeza. Assim é o mundo e assim é o além.
Quanto a mim, não sou dos mais exigentes. Minha opinião é que, tirando este maldito som de harpas, o céu é um lugar agradável. Os anjos voam placidamente de um lado para outro, ninguém fura a fila do maná e a visão que se tem daí de baixo é ótima. Quando não está nublado, até uns joguinhos consigo ver.
Anteontem, por sinal, fez 50 anos que assisti a um jogo sentado nas recém-inaguradas arquibancadas do Maracanã. Foi a final da Copa de 1950. Essa foi, aliás, a partida mais emocionante que vi em minha vida.
Lembro-me como se fosse hoje: O primeiro tempo foi tenso e, apesar da fama dos brasileiros, quem mais esteve perto do gol foi o Uruguai. Aos 37min, Miguez surpreendeu a defesa brasileira e mandou uma bola na trave de Barbosa. O estádio inteiro fez um "uuuh" de alívio.
Logo no começo da segunda etapa, porém, o estádio quase veio abaixo. Com um chute cruzado, Friaça abriu o marcador para o Brasil.
A partir daí a multidão entrou em delírio. Mas a festa parou ali pelos 20 minutos, quando o valente Uruguai empatou: Ghiggia, então um jovem de 23 anos, cruzou e Schiaffino, quase na cara do pobre Barbosa, fuzilou.
Depois daquele gol o tempo parecia se arrastar. Cada segundo parecia um minuto e cada minuto, um século. Está bem, não exageremos que é pecado: cada minuto parecia uma hora.
Os brasileiros estavam num impasse. Como o empate lhes dava o título, não decidiam se era melhor atacar para decidir tudo de uma vez ou se era mais prudente ficar na defesa para não tomar outro gol.
Atacavam pensando em se defender, defendiam pensando em atacar. Estavam entre a cruz e a espada, entre Deus e o Diabo. E assim continuaram por um bom tempo, até que aconteceu o lance que mudou tudo.
Eram mais ou menos 34min de jogo, quando Julio Perez lançou Ghiggia na ponta-direita. Ele disparou à frente de Bigode e, quando Barbosa saiu para fechar o ângulo, ficou indeciso entre cruzar e chutar. Decidiu chutar. E fez o gol. 200 mil torcedores calaram-se na mesma hora.
Ou melhor, 199.999. Quase se podia ouvir as lágrimas dos brasileiros caindo no chão. Só eu gritava e berrava: "Viva la Celeste!, viva la Celeste!"
Depois da virada, os brasileiros pareciam ter perdido a noção de onde estavam ou do que faziam. Atacaram, é certo, e até perderam duas ou três chances, mas tudo era feito sem ordem nenhuma, facilitando as coisas para Máspoli e a nossa defesa.
Quando o jogo acabou, aquelas centenas de milhares de pessoas caminharam silenciosamente em direção aos portões. Muitas até choravam.
Chegou uma hora em que só eu estava no meio daquela imensidão de cimento.
Fiquei para ver a festa dos jogadores no centro do campo, a entrega das medalhas e a volta olímpica.
Os funcionários queriam fechar os portões do estádio e eu continuava lá, gritando e dançando como um louco.
Tudo é uma questão de ponto de vista. O que para uns é o inferno, para outros é o céu.
Algum tempo depois daquele jogo, os consagrados Schiaffino e Ghiggia foram para o Milan. Schiaffino, como era descendente de italianos, chegou até a jogar algumas partidas pela seleção italiana. Ghiggia, o carrasco, ainda foi para a Roma antes de voltar para o Uruguai. Só pendurou as chuteiras aos 42 anos, no Sudamérica.
E eu morri atropelado por uma Mercedes-Benz, último tipo. É como eu sempre digo: "O que para uns é o céu, para outros é o inferno. Tudo é uma questão de ponto de vista".
E-mail torero@uol.com.br


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