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FUTEBOL
Quando o inferno é o céu
JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA
Tudo é uma questão de ponto
de vista: uns acham o inferno
agradável porque tem um ótimo
aquecimento central e belas mulheres, outros o acham um lugar
infernal por causa do cheiro de
enxofre. Com o céu é a mesma
coisa: uns gostam por causa da
tranquilidade, outros sentem falta da televisão.
O que para uns é alegria, para
outros é tristeza. Assim é o mundo e assim é o além.
Quanto a mim, não sou dos
mais exigentes. Minha opinião é
que, tirando este maldito som de
harpas, o céu é um lugar agradável. Os anjos voam placidamente
de um lado para outro, ninguém
fura a fila do maná e a visão que
se tem daí de baixo é ótima.
Quando não está nublado, até
uns joguinhos consigo ver.
Anteontem, por sinal, fez 50
anos que assisti a um jogo sentado nas recém-inaguradas arquibancadas do Maracanã. Foi a final da Copa de 1950. Essa foi,
aliás, a partida mais emocionante que vi em minha vida.
Lembro-me como se fosse hoje:
O primeiro tempo foi tenso e, apesar da fama dos brasileiros, quem
mais esteve perto do gol foi o Uruguai. Aos 37min, Miguez surpreendeu a defesa brasileira e
mandou uma bola na trave de
Barbosa. O estádio inteiro fez um
"uuuh" de alívio.
Logo no começo da segunda
etapa, porém, o estádio quase
veio abaixo. Com um chute cruzado, Friaça abriu o marcador
para o Brasil.
A partir daí a multidão entrou
em delírio. Mas a festa parou ali
pelos 20 minutos, quando o valente Uruguai empatou: Ghiggia,
então um jovem de 23 anos, cruzou e Schiaffino, quase na cara do
pobre Barbosa, fuzilou.
Depois daquele gol o tempo parecia se arrastar. Cada segundo
parecia um minuto e cada minuto, um século. Está bem, não exageremos que é pecado: cada minuto parecia uma hora.
Os brasileiros estavam num impasse. Como o empate lhes dava o
título, não decidiam se era melhor atacar para decidir tudo de
uma vez ou se era mais prudente
ficar na defesa para não tomar
outro gol.
Atacavam pensando em se defender, defendiam pensando em
atacar. Estavam entre a cruz e a
espada, entre Deus e o Diabo. E
assim continuaram por um bom
tempo, até que aconteceu o lance
que mudou tudo.
Eram mais ou menos 34min de
jogo, quando Julio Perez lançou
Ghiggia na ponta-direita. Ele disparou à frente de Bigode e, quando Barbosa saiu para fechar o ângulo, ficou indeciso entre cruzar e
chutar. Decidiu chutar. E fez o
gol. 200 mil torcedores calaram-se
na mesma hora.
Ou melhor, 199.999. Quase se
podia ouvir as lágrimas dos brasileiros caindo no chão. Só eu gritava e berrava: "Viva la Celeste!, viva la Celeste!"
Depois da virada, os brasileiros
pareciam ter perdido a noção de
onde estavam ou do que faziam.
Atacaram, é certo, e até perderam
duas ou três chances, mas tudo
era feito sem ordem nenhuma, facilitando as coisas para Máspoli e
a nossa defesa.
Quando o jogo acabou, aquelas
centenas de milhares de pessoas
caminharam silenciosamente em
direção aos portões. Muitas até
choravam.
Chegou uma hora em que só eu
estava no meio daquela imensidão de cimento.
Fiquei para ver a festa dos jogadores no centro do campo, a entrega das medalhas e a volta
olímpica.
Os funcionários queriam fechar
os portões do estádio e eu continuava lá, gritando e dançando
como um louco.
Tudo é uma questão de ponto
de vista. O que para uns é o inferno, para outros é o céu.
Algum tempo depois daquele
jogo, os consagrados Schiaffino e
Ghiggia foram para o Milan.
Schiaffino, como era descendente
de italianos, chegou até a jogar
algumas partidas pela seleção italiana. Ghiggia, o carrasco, ainda
foi para a Roma antes de voltar
para o Uruguai. Só pendurou as
chuteiras aos 42 anos, no Sudamérica.
E eu morri atropelado por uma
Mercedes-Benz, último tipo. É como eu sempre digo: "O que para
uns é o céu, para outros é o inferno. Tudo é uma questão de ponto
de vista".
E-mail torero@uol.com.br
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