São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 2006

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SONINHA

Honra, vingança e viagens

No fundo, Zidane e Materazzi agiram como dois moleques na rua na final, cheios de conceitos rasos. Dois tontos

QUANDO Materazzi entrou em campo contra a República Tcheca, substituindo o contundido Nesta, um torcedor da Itália ao meu lado olhou para o céu com desgosto. "Esse cara é um cavalo; daqui a pouco ele consegue ser expulso." Pouco depois, o zagueiro subiu a 2,70 m e fez o gol da vitória...
Meu amigo não deixou de achá-lo "um cavalo". Zidane também não deixou de ser um jogador de classe porque investiu contra o italiano como se fosse um cavalo, um alce, um rinoceronte. Há quem veja nobreza até na sua cabeçada, mas isso me parece loucura. Compreender que um artista, um gênio, um ídolo também erra é uma coisa. Glamourizar o erro é outra.
Aplaudir a agressão de Zidane remete a uma idéia medieval de defesa da honra e da legitimidade da vingança que não me agrada. Não se deve dar ao episódio dimensão maior do que tem -um ofendeu, o outro agrediu.
Novidade? Ao mesmo tempo, como resistir a uma discussão que se relaciona com várias outras, ligadas mas não circunscrita apenas ao futebol? No primeiro momento, aventou-se que Materazzi teria usado termos xenófobos ou racistas. Xenofobia e racismo são problemas graves, assustadores, responsáveis por verdadeiras tragédias na história da humanidade; é compreensível que tenham se acendido sinais de alerta.
Mas a provocação deliberada no campo de jogo, tentando desestabilizar o adversário atingindo o que ele tiver de mais vulnerável, de mais potencialmente irritante, é realmente mais grave se a ofensa tiver teor racista? Ou é uma demonstração de mau-caratismo e cafagestagem, independentemente do que foi dito? Não é uma pergunta retórica; não sei a resposta. A ofensa racista é prova de racismo? Sei que exclamar "viado!" (com "i" mesmo) não é exclusividade de homófobos. Mas racismo é tão dissimulado, tão pouco admitido, que xingar alguém a partir da cor da pele talvez seja revelador de desprezos ocultos. A mim, por exemplo, jamais ocorreria, mesmo no auge da raiva e descontrole, chamar alguém de macaco. Jamais. Voltando à final da Copa. Tivesse Materazzi dito "argelino filho-da-puta", mais gente perdoaria (ou aplaudiria) a cabeçada. O zagueiro teria tocado em ponto nevrálgico, sobre o qual precisamos ser contundentes e intolerantes. "Filho-da-puta", só, não justificaria reação tão raivosa. É xingamento besta consagrado, quem se importa com ele? Mas dizer "sua irmã é uma puta" é imperdoável, um insulto à honra da família. Faz sentido? Zidane desfalcou seu time para não deixar barato uma provocação. A "defesa da honra" vale o sacrifício de tanto esforço, justifica o abandono de uma meta que envolvia e interessava a tantos?
Que honra é essa? Uma besteira dita por um energúmeno justifica uma explosão de raiva, porque ele "mexeu com a minha irmã"? No fundo, um e outro agiram como dois moleques na rua, cheios de conceitos rasos sobre "honra" e "família", sobre hombridade e justiça, provocando e passando recibo um ao outro. Dois tontos. Não deixa de ser revelador da educação dos meninos mundo afora, tenham eles quatro ou oito horas diárias de escola. (Aliás, a que conclusão chegariam se o autor da cabeçada fosse um zagueiro tosco de Gana, um volante brucutu do Irã ou um brasileiro-sem-educação? O que deduziriam sobre a influência do ambiente hostil, da guerra e da política corrupta no comportamento dos jogadores? Embarcaríamos em mil outra viagens, mais delirantes ou menos...). Para encerrar: em diversas circunstâncias, tem gente que faz de tudo para levar uma cabeçada. Pede, merece.
Talvez o melhor castigo seja não dar -e depois oferecer o prêmio pela vitória para "a senhora sua mãe", como uma vez fez Pelé. Ídolo não porque deu cotoveladas, e sim porque fez gols.


soninha.folha@uol.com.br

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