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SONINHA
Honra, vingança e viagens
No fundo, Zidane e Materazzi agiram como dois moleques na rua na final, cheios de conceitos rasos. Dois tontos
QUANDO Materazzi entrou em
campo contra a República
Tcheca, substituindo o contundido Nesta, um torcedor da Itália
ao meu lado olhou para o céu com
desgosto. "Esse cara é um cavalo; daqui a pouco ele consegue ser expulso." Pouco depois, o zagueiro subiu a
2,70 m e fez o gol da vitória...
Meu amigo não deixou de achá-lo
"um cavalo". Zidane também não
deixou de ser um jogador de classe
porque investiu contra o italiano como se fosse um cavalo, um alce, um
rinoceronte. Há quem veja nobreza
até na sua cabeçada, mas isso me parece loucura.
Compreender que um artista, um
gênio, um ídolo também erra é uma
coisa. Glamourizar o erro é outra.
Aplaudir a agressão de Zidane remete a uma idéia medieval de defesa da
honra e da legitimidade da vingança
que não me agrada. Não se deve dar
ao episódio dimensão maior do que
tem -um ofendeu, o outro agrediu.
Novidade? Ao mesmo tempo, como
resistir a uma discussão que se relaciona com várias outras, ligadas mas
não circunscrita apenas ao futebol?
No primeiro momento, aventou-se que Materazzi teria usado termos
xenófobos ou racistas. Xenofobia e
racismo são problemas graves, assustadores, responsáveis por verdadeiras tragédias na história da humanidade; é compreensível que tenham se acendido sinais de alerta.
Mas a provocação deliberada no
campo de jogo, tentando desestabilizar o adversário atingindo o que ele
tiver de mais vulnerável, de mais potencialmente irritante, é realmente
mais grave se a ofensa tiver teor racista? Ou é uma demonstração de
mau-caratismo e cafagestagem, independentemente do que foi dito?
Não é uma pergunta retórica; não
sei a resposta. A ofensa racista é prova de racismo? Sei que exclamar
"viado!" (com "i" mesmo) não é exclusividade de homófobos. Mas racismo é tão dissimulado, tão pouco
admitido, que xingar alguém a partir
da cor da pele talvez seja revelador
de desprezos ocultos. A mim, por
exemplo, jamais ocorreria, mesmo
no auge da raiva e descontrole, chamar alguém de macaco. Jamais.
Voltando à final da Copa. Tivesse
Materazzi dito "argelino filho-da-puta", mais gente perdoaria (ou
aplaudiria) a cabeçada. O zagueiro
teria tocado em ponto nevrálgico,
sobre o qual precisamos ser contundentes e intolerantes. "Filho-da-puta", só, não justificaria reação tão
raivosa. É xingamento besta consagrado, quem se importa com ele?
Mas dizer "sua irmã é uma puta" é
imperdoável, um insulto à honra da
família. Faz sentido? Zidane desfalcou seu time para não deixar barato
uma provocação. A "defesa da honra" vale o sacrifício de tanto esforço,
justifica o abandono de uma meta
que envolvia e interessava a tantos?
Que honra é essa? Uma besteira
dita por um energúmeno justifica
uma explosão de raiva, porque ele
"mexeu com a minha irmã"? No
fundo, um e outro agiram como dois
moleques na rua, cheios de conceitos rasos sobre "honra" e "família",
sobre hombridade e justiça, provocando e passando recibo um ao outro. Dois tontos. Não deixa de ser revelador da educação dos meninos
mundo afora, tenham eles quatro ou
oito horas diárias de escola. (Aliás, a
que conclusão chegariam se o autor
da cabeçada fosse um zagueiro tosco
de Gana, um volante brucutu do Irã
ou um brasileiro-sem-educação? O
que deduziriam sobre a influência
do ambiente hostil, da guerra e da
política corrupta no comportamento dos jogadores? Embarcaríamos
em mil outra viagens, mais delirantes ou menos...). Para encerrar: em
diversas circunstâncias, tem gente
que faz de tudo para levar uma cabeçada. Pede, merece.
Talvez o melhor castigo seja não
dar -e depois oferecer o prêmio pela vitória para "a senhora sua mãe",
como uma vez fez Pelé. Ídolo não
porque deu cotoveladas, e sim porque fez gols.
soninha.folha@uol.com.br
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