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COPA 2006
Tão questionado em 1970 quanto o Fenômeno agora, o Rei perdeu condição de intocável antes de brilhar na conquista do tri e se consolidar como deus da bola
RONALDO
em dias de
PELÉ
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
Ronaldo, o Fenômeno, deveria
dar ouvidos a Pelé, o Rei do Futebol. Quando comenta a má fase
do artilheiro brasileiro às vésperas
do Mundial, o maior jogador da
história do futebol sabe exatamente do que está falando: pois
ele mesmo, o intocável, foi duramente questionado poucos dias
antes do início da Copa do México, em 1970 - aquela em que Pelé
viria a consolidar a sua condição
inquestionável de deus da bola.
Havia um clima generalizado de
desconfiança em relação a Pelé
naquela época, o que, visto em retrospectiva, soa como algo difícil
de acreditar. Afinal, o mito criado
em torno do craque não combina
com vaias e críticas. No entanto
elas foram abundantes, e muitos
naquele tempo questionavam se a
carreira do Rei estava no fim,
mesma indagação que hoje é feita
em relação a Ronaldo.
Em 1970, Pelé, assim como Ronaldo, chegara aos 29 anos cercado de imensa badalação. No ano
anterior, ele rompera a marca dos
mil gols, uma ocasião explorada
até hoje como símbolo de sua superioridade nos gramados -e
que inspira a patética busca de
Romário por glória semelhante.
Pelé foi condecorado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici,
acabou virando selo comemorativo e discursou em favor das
"criancinhas pobres".
Quando a seleção brasileira desembarcou no México, em maio,
para sua preparação final antes da
Copa do Mundo, os mexicanos
que recepcionaram a equipe no
aeroporto gritavam o protocolar
"Viva Brasil!", mas passaram a
gritar "Viva Pelé" assim que avistaram o craque.
Dias depois, antes de um amistoso contra um combinado local
de Guadalajara, cartazes espalhados pela cidade anunciavam a
partida dizendo: "Hoy no trabajamos. Vamos a ver Pelé". Ou seja,
era Pelé, e não a seleção brasileira,
quem realmente importava.
Sua situação no Brasil, por outro lado, não era confortável. Ele
vinha jogando mal havia algum
tempo, e a hora dessa verdade
chegou quando João Saldanha,
então o treinador da seleção, resolveu barrá-lo de um amistoso
contra o Chile, programado para
março de 1970. "Você não anda
bem ultimamente", disse Saldanha a Pelé, segundo relato do próprio treinador. "Se a fase não é
boa, é preciso esperar. Por isso você sai nesse jogo."
A má fase de Pelé era quase um
consenso, inclusive entre os inimigos de Saldanha, treinadores
que haviam criticado sua escolha
como técnico e que eram vistos
pela imprensa como candidatos a
sua vaga em caso de demissão.
Flávio Costa, treinador do Brasil
na trágica Copa do Mundo de
1950, defendeu que Pelé deveria ir
para o banco. O próprio Zagallo,
que viria a substituir Saldanha,
declarou: "Pelé, no momento, é
nocivo à seleção".
Alguns meses antes da Copa,
Pelé renovara seu contrato com o
Santos por 840 mil cruzeiros novos, ou cerca de R$ 715 mil em valores atualizados, por dois anos.
Era tanto dinheiro, para os padrões da época, que o jornal "Última Hora", em charge publicada
no dia 18 de abril de 1970, mostrou Pelé sentado sobre um grande saco de dinheiro e pedindo ajuda "às criancinhas".
O dinheiro e o glamour que cercavam o craque eram vistos, aqui
e ali, como responsáveis por seu
desempenho irregular. Circulavam rumores de que Pelé estava
tomando remédio para dormir
devido à série de compromissos
assumidos fora de campo. A boataria, nunca confirmada, foi suficiente para que a Assembléia Legislativa de Pernambuco desistisse de condecorar Pelé, às vésperas
da Copa, para não premiar um
"viciado em narcóticos", conforme relato de um jornal local.
O estado físico de Pelé, como
hoje acontece com Ronaldo, era
um assunto recorrente antes da
disputa do Mundial. Em declaração depois de ter sido demitido,
Saldanha afirmou que "os homens da comissão técnica [da seleção] e da CBD" sabiam que Pelé
não estava em condições de disputar a Copa. "Para mim, Pelé
não seria titular da seleção brasileira, apesar de sabermos que ele
é um gênio. Pode jogar boas partidas, mas não está em boas condições físicas", afirmou Saldanha
em março de 1970.
Ainda como técnico da seleção,
Saldanha afirmou que Pelé era
míope, declaração que passaria
injustamente à história como a
prova de que o treinador, antes
bestial, tornara-se uma besta, o
que justificaria a sua demissão.
O próprio Pelé, porém, admitiu
o problema, embora dissesse que
isso não o atrapalhava. O episódio simbolizou a rota de colisão
entre os dois, mas a verdade é que
a avaliação de Saldanha sobre as
condições de Pelé não era sem
fundamento. No jogo que custou
a cabeça do técnico, um medíocre
empate em 1 a 1 com o Bangu, no
Rio, em 14 de março de 1970, Pelé
voltou a jogar mal e foi vaiado.
Na atribuição de notas aos jogadores feita pelo "Última Hora", o
jornal foi categórico sobre o craque: "Péssimo".
Um mês depois, o mesmo jornal indagava se Pelé deveria parar
de jogar: "A ascensão e queda de
um ídolo é um fenômeno bastante conhecido. Pelé, o ídolo que todos pensavam que ia ser eterno,
está sentindo nos comentários
desfavoráveis da imprensa e nas
vaias e decepções da torcida, que
sua imagem de gênio já não tem o
mesmo brilho, ou melhor, em cada jogada desperdiçada ou infeliz,
ela não se mostra tão nítida como
no começo das eliminatórias.
Uma pergunta, entretanto, fica
pairando entre as críticas: como
estará se sentindo o maior jogador do mundo (...) enquanto disfarça, com sorrisos tranqüilos e
respostas ponderadas, o peso da
vaia de seu torcedor mais fiel?".
Ao contrário de Ronaldo, Pelé
não se queixou da "falta de carinho" da torcida. E culpou a imprensa: "Infelizmente, nem a torcida nem a crônica esportiva entendem de futebol e estão sempre
dispostas a descobrir falhas e motivos para a derrota ou o empate.
O torcedor acredita na imprensa
e vai ao campo preparado para
ver goleadas, e, se isso não acontece, ele vaia, é claro. Isso não me
afeta, porque sinto que estão influenciados pelos jornais".
Ao comentar a possibilidade de
ser substituído, Pelé foi olímpico.
Referindo-se a si mesmo em terceira pessoa, coisa que se tornaria
um hábito, ele disse que não pensava na hipótese de ir para o banco, mas que isso não seria um
problema, já que, segundo o craque, "acabou-se a lenda de que
todo time era obrigado a jogar em
função de Pelé".
Declarações desse tipo soam
hoje como pura demagogia, principalmente porque Saldanha não
caiu devido à suposta exigência
de Médici para que convocasse o
atacante Dario, como o folclore
da Copa de 70 perpetuou, mas
sim, entre outras coisas, porque o
técnico barrou Pelé.
O próprio Saldanha, logo após a
demissão, admitiu isso. E a imprensa tratou a coisa nesses termos. "Uma coisa é certa: Pelé derrubou Saldanha", afirmou o "Última Hora" de março de 1970. "O
técnico sempre demonstrou decisão e autoridade em tudo o que
fazia. Mas, quando tentou mexer
com o Crioulo, faltou-lhe o apoio
necessário para continuar."
Muitos dirão que a coragem
que sobrou ao "João Sem Medo"
para barrar Pelé falta a Parreira
para barrar Ronaldo. É possível,
mas é importante lembrar que
Saldanha foi demitido da seleção
logo depois de sua decisão sobre
Pelé -quem treinou o time no
amistoso contra o Chile foi Zagallo. Pelé provou-se intocável, e talvez Ronaldo também o seja, mas
não pelas mesmas razões.
Diga-se, em favor de Ronaldo,
que Pelé se recuperou e disputou
uma Copa do Mundo deslumbrante, e a mesma expectativa
cerca hoje o atacante do Real Madrid. Mas, sejamos francos, as
comparações acabam aqui: Ronaldo não é Pelé.
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