São Paulo, sexta-feira, 20 de março de 2009

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XICO SÁ

A beleza da firula inútil


Se Garrincha, rumo ao gol, ia e voltava só para não chegar logo e se entediar, por que questionar a arte de Neymar?


AMIGO TORCEDOR , amigo secador, bastou o menino Neymar fazer a sua primeira graça, na peleja com o Rio Branco, para que os cavaleiros da mesa-redonda apontassem suas lanças e baionetas contra o Pequeno Príncipe da Vila. A ladainha é das mais antigas: a utilidade ou não da firula para o jogo. Como se a poesia tivesse serventia no mundo. A poesia, como a graça lá na bandeirinha do escanteio, é inútil, inútil na sua beleza, e basta.
É como o ziriguidum da deusa do bairro que nunca vai nos dar bola, mas nem por isso deixa de ser um alumbramento quando passa. Só um boleiro muito burro joga sempre e cegamente em direção ao gol.
Quem joga o fino pode tudo. Neymar pode até não vingar como craque, mas toca na bola como um, é clássico, como o Meninão do Caixote, o filho do João Antônio, bamba na sinuca de Lapa, Vila Ipojuca, Leopoldina, Pinheiros, Tucuruvi e Osasco, onde fez o nome no pano verde. Correr sempre rumo ao gol é tão entediante que Garrincha ia e voltava na mesma jogada só para não chegar logo e perder o sentido da existência. O bonito é o abuso com a redonda, tratá-la por minha nega e deixá-la mexendo o rabo como cadela de estimação a sorrir no portão. E, se quer saber, leitor do futebol de resultados, o gracejo, como se não bastasse a poética, ainda ganha jogo, humilha, destrói o rival a cada lance.
Não se profissionaliza um garoto abusado de hora para outra. Tanto que Neymar, como informou Cosme Rímoli, foi barrado pelo pai, na semana passada, saindo de casa para jogar a pelada de sempre, na praia, com os amigos. Deixa o menino brincar, como no verso de Jorge Ben Jor sampleado por Mano Brown.
Na peleja histórica de domingo, no Paulistinha que aos poucos vai encobrindo a toda-poderosa Libertadores, além dos pivetes da Vila -Ganso é outra potência ultrajovem-, tem Dentinho, garoto arisco, liso que só um mussum do Tamanduateí em tardes de enchente. Será o clássico do sorriso de arame, o clássico do aparelhinho nos dentes. E se Ronaldo, outro dentuço, jogar como o moço do alambrado, e não como o craque de "Caras", nossa, será um jogo para ser enquadrado na hora no museu do estádio. Um Corinthians x Santos como um soneto, retrato em branco e preto para maltratar mais o coração do que a música homônima de Tom e Chico, afinal, dor de corno até pode ser chique, embora todo sofrimento, no amor como no futebol, sempre esteja mais para o brega e a linda descompostura das almas bêbadas.

Barba
Não bastasse o fim dos apelidos -a moda é ter nome e sobrenome-, outro tipo de craque vive a extinção: o com barba, como atesta, no blog "Literatura é futebol", o escriba Fabrício Carpinejar. Mira só: "Fui esquadrinhar a escalação do Inter, do Grêmio, do São Paulo, do Palmeiras: nenhum Papai Noel, Che Guevara, Fidel Castro. Não há mais atleta barbudo, o que considero uma heresia, um despropósito, uma desigualdade estética. Parece que barba é crime. Será uma proibição contratual? Uma exigência dos técnicos? Penso saudosamente em Sócrates, no zagueiro campeão do mundo Hugo de León, no Mário Sérgio, no atacante Kita...".

xico.folha@uol.com.br


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