São Paulo, sexta-feira, 20 de outubro de 2006

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XICO SÁ

O tricordiano sem coração


Não devemos cobrar ações de ídolo, mas que incomoda, e como, a atitude de alguns, como a d'Ele nesta semana


AMIGO torcedor, amigo secador, não é um assunto fácil, é delicado, delicadíssimo, mas ficou pendurado no trapézio do meu cocuruto tal qual a idéia fixa do emplasto do velho Brás Cubas. Comecei e desisti várias vezes de falar sobre o tema, mas agora o retomo, não tem jeito, a questão me perseguiu nas últimas noites pelas ruas, pelos bares, no japonês aqui da banca, com o porteiro, com as secretárias da calçada da Augusta, só se falava disso, e agora só me resta dividir o alforje de interrogações e sombras.
Não trataria do tal personagem não fosse tão importante em nossas vidas, o tipo do cara que ocupa pelo menos uns dois rolos de filme no cinema das nossas cabeças, o cara das nossas mais fervorosas elegias afetivas, o único jogador do mundo que foi capaz de fazer cessar o fogo de uma guerra, Ele, vocês bem sabem, o homem que comandou a maior máquina de jogar futebol do planeta. Só isso, acham pouco?
Por ser tão significante, por ser o grande inventor da noção da pátria em chuteiras, por ter inventado o que temos hoje como idéia da emoção futebolística... Talvez por isso tudo é que fica mais incômodo vê-lo aparentemente frio, passivo, como se não importassem os lances enviesados da existência.
Nesta semana, muita gente o esperava no enterro da sua filha Sandra, em Santos, com os mesmos olhos de quem aguardava a cobrança daquele pênalti mais importante da história... Correu para a bola, paradinha, canto esquerdo, Andrada se atira na grama, o mundo pára, até o garoto do placar do Maraca vira estátua de sal antes de anotar o milésimo d'Ele, a glória.
Sei, ninguém pode cobrar, mesmo de um ídolo público, que aja como gostaríamos, que atenda aos nossos impulsos mais derretidos e humanos. Não mesmo. Mas que incomoda, ah, incomoda. Sim, tudo bem, se tivesse ido à cerimônia, muita gente também o chamaria de hipócrita, por causa do relacionamento tumultuado com a filha ao longo dos últimos anos. Que complicação a existência, não?
Pior é que lá fora tem um mar dessas mesmas histórias protagonizadas por milhares de pais ausentes, pais que abandonam, pais que somem nos labirintos de São Paulo e nunca mais dão notícia, como no filme "O Céu de Suely", obra fabulosa de Karin Aïnouz -passa agora na Mostra de Cinema, veja e sinta.
É, não é fácil. O mundo da família, amigo, é o mais louco e labiríntico de todos, com seus Cains e Abéis, seus Édipos, Jocastas, Engraçadinhas, Raús, Glorinhas, perdoa-me por me traíres e outros mil episódios de perigoso calibre, personagens e símbolos que dublamos a todo instante, a depender de ciúme, de inveja, de cobiça, de avareza, de falta de atenção, de carência, de um jantar dogmático cujo simples barulho dos talheres desperta inconscientes e resgata o pior de nós, dores envelhecidas em caixas torácicas, ressentimentos, rancores que borbulham no falso brinde do espumante.
Talvez sejamos viciados em fortes emoções. Aí ficamos sentindo a ausência do pai famoso e genial na cerimônia de adeus. É, como diz um amigo, quem nasce no Crato jamais terá a frieza de um londrino. Como diz lá o escriba russo, comigo a anatomia ficou louca, sou todo coração.
É, amigo, o drama de Sandra nos comoveu, aperreou o juízo, emocionou, como todos os fortes enredos de abandono. Seja d'Ele, seja daquele cara ali que avisto da varanda, um homem triste com passos lentos de quem beijou a lona do fracasso.
Faltou emoção, nesse drama, justo ao filho genial de Três Corações. Até a coroa de flores foi em nome da firma do tricordiano -como se denomina quem nasce naquela cidade mineira. Com Ele, a anatomia também ficou louca, e como deve doer essa história, talvez dor crônica.

xico.folha@uol.com.br


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