São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 2009

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JOSÉ GERALDO COUTO

A hora do gladiador


A estreia explosiva de Kléber no Cruzeiro faz pensar na natureza turbulenta do ofício de goleador


POUCAS ESTREIAS devem ter sido tão explosivas quanto a do atacante Kléber no Cruzeiro, anteontem. Em menos de 15 minutos, ele conseguiu a proeza de fazer dois gols e tomar dois cartões amarelos, sendo consequentemente expulso. Não é para qualquer um.
O grande Jorge Ben diz, numa canção memorável, que "zagueiro não pode ser muito sentimental". Artilheiro também não. Lembro vagamente de ter escrito aqui, uns dez anos atrás, a respeito da condição peculiar dos goleadores, indivíduos destinados a disputar sem muita cerimônia o espaço e a bola no interior da grande área.
Quem já jogou futebol, mesmo que só em peladas de fim de semana, sabe que, conforme a gente se aproxima do gol, aumenta a eletricidade no ar, o sangue acelera nas veias, tudo ganha uma nova densidade. A chamada "zona do agrião" parece obedecer a leis próprias, tanto da física como da convivência social. Naquele espaço exíguo e decisivo, é matar ou morrer. Simbolicamente, claro. Que ninguém venha dizer que estou apoiando a violência. Mas o fato é que centroavante muito bonzinho e compreensivo dificilmente dá certo. Fora do campo, o sujeito pode até ser um bom camarada, bonachão e generoso. No interior das quatro linhas, sobretudo dentro do quadrilátero fatal, tem que ser um monomaníaco, obcecado por meter a bola nas redes custe o que custar.
Há os que, para isso, lançam mão da força bruta. É o caso de um Adriano, por exemplo. Outros, baixinhos, recorrem à malícia e à inteligência. É só lembrar do ardiloso Romário, do matreiro Reinaldo. Kléber parece buscar uma síntese das duas coisas. Embora de estatura modesta, muitas vezes abre seu caminho na área a golpes de cotovelo. Disputa cada lance como se brigasse por um prato de comida. Não por acaso é chamado de gladiador. Na Roma antiga, os gladiadores geralmente eram ex-escravos ou proscritos condenados a sobreviver literalmente na porrada. Mais do que arena romana, porém, a grande área é um faroeste em que, se os zagueiros são os xerifes, os goleadores são os fora-da-lei. É um país onde os fracos não têm vez. Talvez seja por isso que os atacantes mais sensíveis ou fracassam ou acabam evitando a área, atacando pelas pontas ou armando as jogadas para outros concluírem. Não vou citar nomes para que não me entendam mal e achem que estou questionando a coragem ou a virilidade de quem quer que seja.
Dito isso, volto ao caso da estreia fulminante de Kléber para dizer que a sua expulsão foi um exagero. O primeiro cartão veio porque ele levantou a camisa ao comemorar um gol. Ora, qual o problema de tirar a camisa no auge da euforia? Eu sei, está na lei. Mas a lei é estúpida. Pode e deve ser mudada. Até pouco tempo atrás, os jogadores eram obrigados a pôr a camisa para dentro do calção, lembra disso? Hoje, decerto porque os patrocinadores ocupam todo o espaço de pano disponível, todos jogam com a camisa para fora. Penso até que a repressão mesquinha ao prazer do gol leva à frustração do atacante (de qualquer jogador, na verdade) e ao aumento de sua agressividade latente. Quem não faz amor faz a guerra.
jgcouto@uol.com.br


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