São Paulo, Sábado, 22 de Janeiro de 2000


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FUTEBOL
Brasil ama Maradona e não sabe

JOSÉ GERALDO COUTO

O garoto Michael Owen é um craque, mas sua proposta de os jogadores cobrarem "direitos autorais" pela exibição de seus gols na mídia é completamente fora de propósito.
Não contesto que alguns gols possam ser qualificados de obras de arte, por seu caráter único, original e transcendente.
Mas o futebolista está em campo justamente para dar espetáculo. Para isso, recebe salário, "bicho", luvas, gratificações etc. Esse dinheiro todo vem, em última análise, do bolso do espectador, seja do que compra ingresso, seja do que dá audiência para as transmissões esportivas.
Quanto mais espetáculo um atleta dá em campo, mais atrai público e, consequentemente, mais valoriza seu passe e seu salário -sem contar os ganhos que pode obter com publicidade.
Se um determinado gol é tão bonito que as emissoras de televisão o exibem pelo mundo afora, isso só aumenta o valor de seu autor como profissional.
Cabe a ele aproveitar essa circunstância da melhor maneira possível.
O mesmo vale para defesas espetaculares, dribles mágicos, jogadas mirabolantes.
A proposta de Owen e Ryan Giggs parece esquecer uma outra coisa importante: o futebol é um jogo coletivo, e alguns dos mais belos gols não são obra de apenas um jogador.
Tomemos um caso recente, o golaço de Alex contra o Chile. Se fosse para cobrar direitos, quem ganharia mais: Ronaldinho, que enfiou uma bola inesperada e perfeita, ou Alex, que matou a zaga e o goleiro adversários com dois toques precisos?
Outra coisa: se existisse cobrança de direitos autorais, poderia haver uma distorção do papel dos jogadores.
Em vez de ajudar o time a vencer, eles talvez se preocupassem em fazer gols "artísticos".
Por fim, há uma questão mais complexa. Quando se fala em arte, pensa-se no caráter original, pessoal e intransferível de uma obra. Ora, alguns gols são de fato originais, mas outros são inspirados em lances alheios anteriores.
Se alguém faz um gol aplicando um drible de corpo semelhante ao que Pelé deu no goleiro do Uruguai na Copa de 70, deve pagar uma parte dos direitos ao rei?
Viola, ao marcar de bicicleta, tem de dividir royalties com Leônidas? Como distinguir, em âmbito planetário, os inventores dos diluidores?
  A teimosia de Wanderley Luxemburgo começa a ter consequências. A exasperante falta de imaginação e de iniciativa da seleção brasileira sub-23 na partida contra o Chile fez todo mundo sentir saudades de Denílson, jogador dispensado do time por um capricho do treinador.
Na equipe que estava em campo, só se poderia esperar criatividade de dois jogadores: Alex e Ronaldinho. Na hora de mexer, o que fez Luxemburgo? Tirou um deles, Ronaldinho -o homem que tinha dado o passe para o gol e batido uma falta no travessão.
O torcedor se perguntou: por quê? Só Luxemburgo pode dar a resposta. Ou talvez nem ele. A impressão que se tem é que, conscientemente ou não, o treinador não pode deixar que ninguém brilhe mais do que ele.
Mesmo que para isso tenha de colocar em campo uma equipe limitada tecnicamente e burocrática taticamente. Temo que talvez estejamos presenciando a aurora de uma "era Mozart" ou de uma "era Émerson" -que de artistas só têm o nome.
  Nós, brasileiros, sempre nutrimos sentimentos ambíguos em relação a Maradona. Ele é, em princípio, o homem que amamos odiar: foi nosso carrasco em 90, ofuscou nossos craques, ousou ser comparado a Pelé.
Mas, sob essa superfície de ressentimento, esconde-se uma enorme admiração pelo "Pibe de Oro".
Nas Copas de 86, 90 e 94, os jogos da Argentina eram os de maior audiência aqui, depois dos do Brasil. Mesmo quando ele inventou o passe para Caniggia que nos tirou da Copa de 90, os brasileiros amantes do futebol secretamente vibraram, pois um lance de gênio liquidava nosso futebolzinho lazarônico.
Desconfio que todo brasileiro ama Maradona sem saber.

E-mail jgcouto@uol.com.br


José Geraldo Couto escreve aos sábados e às segundas-feiras

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