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FUTEBOL
Brasil ama Maradona e não sabe
JOSÉ GERALDO COUTO
O garoto Michael Owen é um
craque, mas sua proposta de os jogadores cobrarem "direitos autorais" pela exibição de seus gols na
mídia é completamente fora de
propósito.
Não contesto que alguns gols
possam ser qualificados de obras
de arte, por seu caráter único, original e transcendente.
Mas o futebolista está em campo justamente para dar espetáculo. Para isso, recebe salário, "bicho", luvas, gratificações etc. Esse
dinheiro todo vem, em última
análise, do bolso do espectador,
seja do que compra ingresso, seja
do que dá audiência para as
transmissões esportivas.
Quanto mais espetáculo um
atleta dá em campo, mais atrai
público e, consequentemente,
mais valoriza seu passe e seu salário -sem contar os ganhos que
pode obter com publicidade.
Se um determinado gol é tão bonito que as emissoras de televisão
o exibem pelo mundo afora, isso
só aumenta o valor de seu autor
como profissional.
Cabe a ele aproveitar essa circunstância da melhor maneira
possível.
O mesmo vale para defesas espetaculares, dribles mágicos, jogadas mirabolantes.
A proposta de Owen e Ryan
Giggs parece esquecer uma outra
coisa importante: o futebol é um
jogo coletivo, e alguns dos mais
belos gols não são obra de apenas
um jogador.
Tomemos um caso recente, o golaço de Alex contra o Chile. Se fosse para cobrar direitos, quem ganharia mais: Ronaldinho, que enfiou uma bola inesperada e perfeita, ou Alex, que matou a zaga e o
goleiro adversários com dois toques precisos?
Outra coisa: se existisse cobrança de direitos autorais, poderia
haver uma distorção do papel dos
jogadores.
Em vez de ajudar o time a vencer, eles talvez se preocupassem
em fazer gols "artísticos".
Por fim, há uma questão mais
complexa. Quando se fala em arte, pensa-se no caráter original,
pessoal e intransferível de uma
obra. Ora, alguns gols são de fato
originais, mas outros são inspirados em lances alheios anteriores.
Se alguém faz um gol aplicando
um drible de corpo semelhante ao
que Pelé deu no goleiro do Uruguai na Copa de 70, deve pagar
uma parte dos direitos ao rei?
Viola, ao marcar de bicicleta,
tem de dividir royalties com Leônidas? Como distinguir, em âmbito planetário, os inventores dos
diluidores?
A teimosia de Wanderley Luxemburgo começa a ter consequências. A exasperante falta de
imaginação e de iniciativa da seleção brasileira sub-23 na partida
contra o Chile fez todo mundo
sentir saudades de Denílson, jogador dispensado do time por um
capricho do treinador.
Na equipe que estava em campo, só se poderia esperar criatividade de dois jogadores: Alex e Ronaldinho. Na hora de mexer, o
que fez Luxemburgo? Tirou um
deles, Ronaldinho -o homem
que tinha dado o passe para o gol
e batido uma falta no travessão.
O torcedor se perguntou: por
quê? Só Luxemburgo pode dar a
resposta. Ou talvez nem ele. A impressão que se tem é que, conscientemente ou não, o treinador
não pode deixar que ninguém brilhe mais do que ele.
Mesmo que para isso tenha de
colocar em campo uma equipe limitada tecnicamente e burocrática taticamente. Temo que talvez
estejamos presenciando a aurora
de uma "era Mozart" ou de uma
"era Émerson" -que de artistas
só têm o nome.
Nós, brasileiros, sempre nutrimos sentimentos ambíguos em relação a Maradona. Ele é, em princípio, o homem que amamos
odiar: foi nosso carrasco em 90,
ofuscou nossos craques, ousou ser
comparado a Pelé.
Mas, sob essa superfície de ressentimento, esconde-se uma enorme admiração pelo "Pibe de Oro".
Nas Copas de 86, 90 e 94, os jogos da Argentina eram os de
maior audiência aqui, depois dos
do Brasil. Mesmo quando ele inventou o passe para Caniggia que
nos tirou da Copa de 90, os brasileiros amantes do futebol secretamente vibraram, pois um lance de
gênio liquidava nosso futebolzinho lazarônico.
Desconfio que todo brasileiro
ama Maradona sem saber.
E-mail jgcouto@uol.com.br
José Geraldo Couto escreve aos sábados e
às segundas-feiras
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