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Nikeonalismo da bola na rede
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Lá na França o jogador Ronaldinho, nascido no subúrbio
do Rio de Janeiro, foi alçado a
paradigma de atleta globalizado neste final de milênio,
enquanto aqui ele é um símile
de star telegênico, como se fosse a Xuxa de chuteira e calção.
A telegenia exige o cultivo
apurado da aparência física. É
por isso que Ronaldinho raspa
a cabeça para ocultar seu cabelo pixaim. Sua noiva é nívea, top model, pin-up, atriz
de telenovela. Dir-se-ia um casal caucásico de exportação.
Assim, o mundo contempla a
tendência ao embranquecimento das população no país
mestiço e com pé na cozinha,
como gosta de repetir o sociólogo presidente da República.
É inegável entre nós a recente americanização do ritual
futebolístico, conforme se observa no Campeonato Paulista
privatizado, por meio das
pompom-girls e bonecos à Disney, o que revela o desejo patológico de mudar de pele.
É difícil falar hoje em dia em
identidade nacional a propósito do futebol. Assim como no
passado as elites colonizadas
importaram os pardais de Paris no Brasil do beija-flor, agora o Paulista tem como símbolo um bicho que parece um
castor dos países frios e temperados. Certamente com objetivo de fazer o torcedor sentir
vergonha do sol nos trópicos.
Depois de comer uma rabada
no Brás, o torcedor paulista
devaneia no campo de futebol
com o sonho coreográfico americano. Ora, direis, já que não
podemos nos tornar socialmente Primeiro Mundo (apenas assombração muda de
mundo...), então que pelo menos o façamos no esporte como
catarse dos pobres.
Diante dos primores da vulgaridade que acompanham a
Copa, recordo-me do grande
escritor Lima Barreto, que foi
refratário ao arranha-céu e à
importação do futebol. Oswald
de Andrade gozava seu amigo
José Lins do Rego por se estapear nas torcidas frenéticas do
Maracanã. O cineasta Glauber
Rocha (com a mesma birra de
Claudio Abramo) dizia que
Pelé chutava com os dois pés a
cabeça do povo brasileiro.
Garoto propaganda da Nike,
Ronaldinho é mais do que um
exímio jogador: ele é um ícone
da esportização multinacional
do mundo. O pensador espanhol Ortega y Gasset cantou
essa pelota há muito tempo,
antes dos badalados Adorno e
Walter Benjamin: o "sportman" é o tipo antropológico
da alienada "rebelião das
massas". Afinal, Fernando
Collor não se esforçou para
igualar o estadista ao atleta?
Megaempresa norte-americana que usa trabalho infantil
na Ásia, a Nike não apenas
imprime seu logotipo no coração marqueteiro dos jogadores, como também interfere na
escalação do time.
A Nike é o FMI do futebol:
nenhuma tomada de decisão é
feita em âmbito nacional. Tudo vem de fora. Se o próprio
território ou subsolo da pátria
não é brasileiro, então por que
haveria de sê-lo o futebol?
Eis o formidável espetáculo
mercadológico a que assistiremos com a Copa: o do nacionalismo sem nação. Com intuito de despertar a emoção
dos torcedores desnacionalizados, a Rede Globo bolou o slogan eufórico: "um caso de
amor com o Brasil!"
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de
ciências sociais da Universidade Federal de Juiz
de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda"
(editora Espaço e Tempo) entre outros
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