São Paulo, sexta, 22 de maio de 1998

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Nikeonalismo da bola na rede

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS

especial para a Folha

Lá na França o jogador Ronaldinho, nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, foi alçado a paradigma de atleta globalizado neste final de milênio, enquanto aqui ele é um símile de star telegênico, como se fosse a Xuxa de chuteira e calção.
A telegenia exige o cultivo apurado da aparência física. É por isso que Ronaldinho raspa a cabeça para ocultar seu cabelo pixaim. Sua noiva é nívea, top model, pin-up, atriz de telenovela. Dir-se-ia um casal caucásico de exportação. Assim, o mundo contempla a tendência ao embranquecimento das população no país mestiço e com pé na cozinha, como gosta de repetir o sociólogo presidente da República.
É inegável entre nós a recente americanização do ritual futebolístico, conforme se observa no Campeonato Paulista privatizado, por meio das pompom-girls e bonecos à Disney, o que revela o desejo patológico de mudar de pele.
É difícil falar hoje em dia em identidade nacional a propósito do futebol. Assim como no passado as elites colonizadas importaram os pardais de Paris no Brasil do beija-flor, agora o Paulista tem como símbolo um bicho que parece um castor dos países frios e temperados. Certamente com objetivo de fazer o torcedor sentir vergonha do sol nos trópicos.
Depois de comer uma rabada no Brás, o torcedor paulista devaneia no campo de futebol com o sonho coreográfico americano. Ora, direis, já que não podemos nos tornar socialmente Primeiro Mundo (apenas assombração muda de mundo...), então que pelo menos o façamos no esporte como catarse dos pobres.
Diante dos primores da vulgaridade que acompanham a Copa, recordo-me do grande escritor Lima Barreto, que foi refratário ao arranha-céu e à importação do futebol. Oswald de Andrade gozava seu amigo José Lins do Rego por se estapear nas torcidas frenéticas do Maracanã. O cineasta Glauber Rocha (com a mesma birra de Claudio Abramo) dizia que Pelé chutava com os dois pés a cabeça do povo brasileiro.
Garoto propaganda da Nike, Ronaldinho é mais do que um exímio jogador: ele é um ícone da esportização multinacional do mundo. O pensador espanhol Ortega y Gasset cantou essa pelota há muito tempo, antes dos badalados Adorno e Walter Benjamin: o "sportman" é o tipo antropológico da alienada "rebelião das massas". Afinal, Fernando Collor não se esforçou para igualar o estadista ao atleta?
Megaempresa norte-americana que usa trabalho infantil na Ásia, a Nike não apenas imprime seu logotipo no coração marqueteiro dos jogadores, como também interfere na escalação do time.
A Nike é o FMI do futebol: nenhuma tomada de decisão é feita em âmbito nacional. Tudo vem de fora. Se o próprio território ou subsolo da pátria não é brasileiro, então por que haveria de sê-lo o futebol?
Eis o formidável espetáculo mercadológico a que assistiremos com a Copa: o do nacionalismo sem nação. Com intuito de despertar a emoção dos torcedores desnacionalizados, a Rede Globo bolou o slogan eufórico: "um caso de amor com o Brasil!"


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (editora Espaço e Tempo) entre outros



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