São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SURFE
Melhor brasileiro é mulher

Com 1,50 m e 42 kg, a surfista cearense Tita Tavares, filha de pescadores nascida em uma favela, ameaça a hegemonia das australianas e tenta título inédito no país
FÁBIO VICTOR
da Reportagem Local

Velho sonho dos surfistas brasileiros, a conquista de um título mundial do esporte para o país nunca esteve tão iminente.
Só que, diferente do que podem supor os desavisados, o potencial campeão não é Fábio Gouveia nem Victor Ribas nem um dos irmãos Padaratz.
Tamanha responsabilidade cabe a uma cearense de 1,50 m e 42 kg, que, a despeito das medidas delicadas, vem se valendo do estilo masculino para alcançar o feito inédito entre os homens do país.
Disputando pela primeira vez o WCT (World Championship Tour, a primeira divisão do surfe mundial) feminino, Tita Tavares, 23, está em quarto lugar no ranking e é apontada por especialistas como a maior promessa mundial do esporte na categoria.
Ela ainda não venceu nenhuma etapa do circuito (teve três terceiros lugares), mas, com 3.720 pontos, ainda tem chances de alcançar a australiana Layne Beachley, que acumula 5.820 pontos e busca o bicampeonato. Ainda restam cinco etapas, de um total de 14, além da que terminou ontem em Lacanau (França) e que só deverá ter amanhã seus pontos computados ao ranking. Tita foi eliminada nas quartas-de-final.
A outra brasileira no WCT, a catarinense Jaqueline Silva, 20, também estreante, está em 13º lugar.
No WCT masculino, o brasileiro mais bem colocado é Victor Ribas, que está na 14ª posição.
Se o título de Tita não vier neste ano, não tardará, apostam os palpiteiros. Seja como for, se o circuito terminasse hoje, ela já teria chegado aonde os homens brasileiros jamais chegaram -apesar de disputarem o Mundial há muito mais tempo. O quinto lugar do paraibano Fábio Gouveia em 1992 foi até hoje a melhor classificação obtida pelo surfe nacional.
O circuito mundial feminino teve a primeira edição em 1977 (um ano depois do masculino), mas as brasileiras só entraram em 1995.
Apesar da enorme diferença do nível de dificuldade (o circuito masculino é disputado por 44 surfistas, enquanto o feminino reúne 15), a tese de que Tita é um fenômeno parece ser senso comum.
"Ela é um grande talento, que começou tarde, foi desperdiçada pelos patrocinadores. Se tivesse entrado no circuito há uns três anos, já estaria brigando diretamente pelo título. Mas no próximo ano ela vem com tudo", prevê Renato Hickel, 36, ex-chefe de árbitros e atual diretor de projetos especiais da ASP (Associação dos Surfistas Profissionais, que comanda o esporte no mundo).
Morando hoje na Austrália, Hickel conhece como poucos o circuito feminino, pois, além de ter sido árbitro da ASP por quase dez anos, foi casado com a australiana Lisa Andersen, tetracampeã mundial e maior surfista da história, que neste ano resolveu não disputar o circuito (leia abaixo).
A própria Lisa reconhece o potencial da brasileira: "Ela é provavelmente a mais talentosa do circuito. Dá gosto vê-la surfar".
A maior virtude de Tita, exaltada por colegas e admitida pela própria, é conseguir se aproximar do modo masculino de surfar.
"Há muita diferença entre os estilos; os homens estão muito à frente. Mas a Tita surfa quase como um. Faz manobras com força, velocidade e segurança. Em ondas pequenas, surfa de igual para igual com um homem", relata o carioca Renan Rocha, segundo brasileiro no WCT (19º).
"Para ser sincero, acho o surfe feminino meio chato de assistir. Mas quando a Tita está no mar é diferente", diz Rocha.
"Ela tem um dos melhores estilos e, de longe, o melhor repertório de manobras do circuito. Faz algumas que ninguém faz, atingindo flashes de brilhantismo em certas baterias", completa Hickel.
"Pela leveza, ela ganha velocidade muito rápido na onda. Mas é musculosa, tem força. Parece uma ginastazinha", compara o melhor brasileiro do WCT, o carioca Victor Ribas.
Para Tita, a agilidade é que faz a diferença de seu estilo.
"Elas (as adversárias) não têm flexibilidade, não têm movimentação na coluna e nos quadris. Eu passei a infância fazendo surfe-base, caí muito para aprender", afirma. O seu treinamento, conta, consistia em se equilibrar, em terra firme, em cima de uma tábua colocada sobre uma garrafa.
Nascida na favela do Titanzinho, à beira-mar de Fortaleza, onde ainda mora, Tita tem uma história rara dentro de um esporte dominado por jovens de classe média. Seu pai, Eduardo Brito, 54, é pescador. Quando a mãe morreu, ao dar à luz a irmã Maysa, Tita tinha cinco anos e começava a brincar de surfar, usando um pedaço de madeira como prancha.
"Só Deus sabe o que eu passei para chegar até aqui. Já tive dificuldade para comer. Às vezes, tinha dinheiro para o pão, mas faltava para o café", diz, recordando a infância e a adolescência.
Hoje, viajando o mundo inteiro para competir, Tita enfrenta outro tipo de problema. Sua surpreendente estréia no WCT tem despertado rebuliço nas australianas, hegemônicas na categoria -11 das 15 competidoras do circuito são desse país.
"Elas tentam me aborrecer de tudo que é jeito, tirar minha concentração, soltam piadinhas em gírias australianas, achando que não entendo. Mas não me ofendo. Pelo contrário, quem está se preocupando são elas", conta Tita.
Na primeira prova de 1999, na Austrália, ela foi acusada de agredir uma "local" na disputa por uma onda -o que nega veementemente- e quase foi punida.
A propósito: com 1,68 m e 55 kg, a líder Layne Beachley, a maior rival de Tita, tem 18 cm e 13 kg a mais que a brasileira.
"As meninas estão apavoradas com ela, o que é bom sinal. Mas a Tita precisa ter mais experiência. Ela tem a intuição dela e pronto, não ouve ninguém. Precisaria de um técnico a acompanhando. Ninguém é campeão sozinho", aconselha Victor Ribas.
"Ela tem que competir usando a cabeça, não só o coração. Além disso, precisa melhorar seu surfe em ondas grandes e perfeitas, que não temos no Brasil", acrescenta Renan Rocha.
Tita ainda não tem um técnico, mas costuma ser acompanhada por seu manager, Bira Schauffert, pago por ela mesma com o dinheiro (cerca de R$ 5 mil mensais, além de despesas de viagens) que recebe do patrocinador -a fábrica de roupas de surfe Maresia, de Forteleza.

BATERIA

Folha - Como você vê a chance de ganhar um título mundial para o Brasil antes dos homens?
Tita Tavares -
A qualquer hora pode sair um campeão do Brasil, tanto no masculino quanto no feminino. A gente não pode esperar muito tempo, não. Tem que ser logo. Tenho fé em Deus que tenho chance. Ando sempre com uma bandeira do Brasil comigo.

Folha - Como o seu pai, pescador, influenciou sua carreira?
Tita -
Ele fez a madeirinha com que comecei a surfar. Como perdi minha mãe cedo, sempre fui muito apegada a ele. Ia para a praia cedinho com ele para tirar a rede, metia o dedo nos olhos dos peixes. Puxei dele o gosto pelo mar. Ele até gostava de pegar onda de peito... Está feliz, porque sempre teve a esperança de que eu chegasse lá.

Folha - Como tem gasto o dinheiro que ganha?
Tita -
Comprei uma casa no Titanzinho, ajudo a minha família todo mês. Estou juntando dinheiro para comprar um carro. O meu sonho é ter um Gol quatro portas.

Folha - Você tem viajado o mundo todo competindo. Sabe falar outras línguas?
Tita -
Nunca estudei inglês, mas me viro tranquilamente só pelas roubadas que já passei, chegando em aeroporto, para pegar táxi, entrar em hotel...

Folha - Você vive sozinha, está namorando?
Tita -
Namoro há 11 anos com o (o surfista cearense) Ricardo (Silva, irmão do também surfista Fabinho Silva). Na minha casa moramos eu, minhas cachorras (das raças pastor alemã e fila brasileiro) e meu telefone.


Texto Anterior: Equipe vive reestruturação
Próximo Texto: Tetracampeã é obstáculo para 2000
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.