|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
A "Tosca" e os toscos
Os Jogos são a ocasião de um
Festival Olímpico das Artes.
Há de tudo: cerimônia aborígene,
balé, ópera, ciclo de filmes, exposições de arte, teatro.
O programa é uma declaração
que diria: "Sydney está orgulhosa
de ser a sede da Olimpíada, mas a
cidade não é só isso. A paixão pelo
esporte é apenas uma faceta. Gostamos de outras coisas também,
com toda a complexidade pós-moderna: mesmo respeito para a
alta cultura, o folclore, o pop etc.".
Como o edifício da Ópera é (merecidamente) o símbolo da cidade, escolhemos assistir a uma representação da "Tosca" (que foi
ótima). No máximo 30% do público era olímpico: delegações ou
turistas em Sydney para os Jogos.
Os demais eram habitués: pessoas
de classe média (regra na Austrália) apreciando a arte lírica ou se
convencendo de seu interesse pela
ópera. À primeira vista, parecia o
tipo de público que se encontra na
Sala São Paulo ou no Cultura Artística para um bom concerto.
Ora, antes que o espetáculo começasse e nos dois intervalos entre os atos, as pessoas se reuniam
no foyer na frente de duas televisões -cuja presença neste lugar
era inesperada. Assistiam a fragmentos das provas de natação daquela noite, torcendo e festejando
(ou lamentando) os resultados.
Ao tocar da música que assinalava a hora de regressar aos assentos, todos voltavam felizes para o
triste destino de Mário Cavaradossi e Tosca.
Pergunta: se houvesse uma
Olimpíada em São Paulo, você
acha que o público do Cultura Artística pediria TVs no foyer para
torcer nos intervalos? Aposto que
não. Claro, a maioria provavelmente seria bem feliz com essa
possibilidade, mas quase todos
achariam inaceitável misturar
seu gosto pela alta cultura com
um interesse para o esporte. O
mesmo aconteceria na Europa e,
em menor medida, nos EUA. A
razão dessa autocensura não seria estética, mas social e política.
A cultura é um excelente instrumento de separação entre as classes. Para que funcione assim, naturalmente é necessário que o
pessoal de baixo seja mantido
afastado da alta cultura (o que é
simples: basta complicar o acesso
à educação e manter inacessíveis
os preços dos eventos). Mas para
tal fim também é útil manter a
ficção de um gosto de elite que
desprezaria, por exemplo, a vil
paixão pelo esporte. A "Tosca" é
nossa e quem gosta de esporte é
tosco -não vamos confundir.
Um público de amadores de
ópera que, nos intervalos, gosta e
não tem vergonha de torcer na
frente da TV é índice de uma maturidade democrática fora de série. A Austrália aparentemente é
uma sociedade onde abrir e manter a diferença social não é uma
preocupação dominante.
E-mail ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Eles também fazem a Olimpíada: Para variar...acaba em pizza Próximo Texto: Futebol: Santos leva indignação de Dodô ao Rio Índice
|