São Paulo, sábado, 23 de dezembro de 2006

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JOSÉ GERALDO COUTO

Todos os tempos


As eleições dos melhores atletas da história revelam que cada geração constrói a sua própria mitologia


A EXPRESSÃO "de todos os tempos" sempre me provocou um arrepio. Lembro do tom quase religioso com que meu pai dizia que Fulano foi o melhor "centro-médio", Beltrano o melhor atacante "de todos os tempos".
Era o mesmo que instalar os nomeados automaticamente num altar com Nossa Senhora e todos os outros santos. Dito isso, o leitor pode imaginar a importância que tem para mim uma publicação como a recém-lançada "Placar" especial "Meu Time dos Sonhos".
Na revista, 240 eleitores, entre jornalistas, técnicos, artistas, intelectuais e ex-jogadores escolhem os melhores atletas da história dos 12 clubes mais populares do país. Vinte eleitores por clube, portanto.
Para quem gosta do futebol e de sua história, mas sobretudo para quem gosta de viajar na fantasia própria e alheia, dá para ficar horas folheando a revista. Por ela desfilam os personagens que ocuparam retinas e imaginário de várias gerações.
Claro que há muita coisa previsível. Quem não sabia, por exemplo, que Pelé seria unanimidade na seleção atemporal do Santos? Ainda assim, há surpresas dignas de nota. Garrincha, por exemplo, não foi escolhido por todos os eleitores do Botafogo. Dois deles o deixaram de fora da seleção da estrela solitária, um deles o meu amigo jornalista Tato Coutinho, certamente por não ter visto jogar, ao vivo, o anjo de pernas tortas. No Cruzeiro, só um eleitor deixou Tostão de fora, e outro vetou Dirceu Lopes -crimes inafiançáveis, em ambos os casos.
Curiosamente, foram dois cartolas do clube. A politicagem tem razões que a razão comum desconhece. O que há de mais interessante, creio, são os votos de ex-atletas. Não só porque representam olhar qualificado mas porque revelam às vezes características de temperamento e caráter dos próprios votantes.
Quase todos os atletas consultados votaram em si próprios para integrar as seleções de seus respectivos clubes, até craques habitualmente modestos, como Ademir da Guia e Wladimir. Nada contra essa consciência do próprio valor. Tanto que eles estão, merecidamente, entre os mais votados de seus times. Mais surpreendente é ver Antônio Lopes apontar como melhor técnico da história do Vasco... Antônio Lopes. Sua frase a respeito (pois a cada voto há uma justificativa) é: "Sem comentários". Dizemos o mesmo.
Justamente pela tendência geral à auto-eleição, chamam a atenção os casos dos craques que não se incluíram em seu "time dos sonhos". Rogério Ceni, um dos são-paulinos mais lembrados (com 16 votos, só ficou atrás de Raí), foi um. Preferiu votar em Zetti, explicando: "Foi o goleiro que mais me ensinou".
Outro caso notável é o do volante Zé Carlos, que brilhou no Cruzeiro de Tostão e Dirceu Lopes antes de ser campeão brasileiro com o Guarani em 78. Em sua seleção, escalou o colega de geração Piazza e justificou: "Pelo espírito de liderança. Um volante que tinha extrema facilidade no desarme". As palavras poderiam ser aplicadas a Zé Carlos.
Mas o dado que lança mais luz à questão e mostra como é relativo o conceito "de todos os tempos" é o cotejo que a revista faz entre a votação atual e enquetes semelhantes feitas em 1982 e 1994. Nos 24 anos que separam a primeira pesquisa da mais recente, apagaram-se nas brumas da memória craques do passado como o corintiano De Maria, o botafoguense Heleno de Freitas e o palmeirense Oberdan Catani. O flamenguista Vevé, eleito na enquete de 82, só teve um voto na atual.
Ou seja, até a imortalidade um dia acaba. Toda história é contemporânea, dizia o filósofo italiano Benedetto Croce. Cada geração vê o passado pela moldura de sua época e cria sua própria mitologia. Que coisa terrível é o tempo. Todos os tempos.

jgcouto@uol.com.br


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