São Paulo, sábado, 25 de abril de 2009

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JOSÉ GERALDO COUTO

A língua dos boleiros


Se a fala de Maradona é dramática e a de Romário é malandra, Ronaldo achou sua voz no registro épico


É PRECISO exaltar a fase esplendorosa do Internacional, talvez o melhor time do país na atualidade.
É preciso rir do gol de bunda de Dagoberto, é preciso comentar a ruptura de Adriano com a Inter de Milão, é preciso protestar contra o aumento acintoso do preço dos ingressos para a final do Paulistão, é preciso aplaudir as campanhas dos clubes brasileiros na Libertadores. E, para completar, é preciso "anunciar o fim do mundo", como dizia o poema de Drummond.
Mas outros estão fazendo tudo isso neste exato momento, ou já o fizeram. Por isso quero tratar de um assunto aparentemente mais banal, que é a fala dos futebolistas. Não me refiro aos erros de português ou aos lugares-comuns que alimentam as piadas e as antologias da internet. Estou pensando justamente nas exceções, ou seja, nos jogadores que exibem uma linguagem própria, um jeito pessoal de se expressar, que não tem nada a ver, aliás, com uma pretensa sofisticação de vocabulário. Não é o "falar difícil" que me interessa aqui, mas o "falar com a própria voz".
"Foi um grande dia", disse Ronaldo ao final da vitória sobre o São Paulo, domingo passado. Uma frase simples, mas lapidar. Ele não disse, repare bem, "Foi um ótimo jogo" nem "Vencemos porque jogamos melhor" nem tampouco "Foi uma vitória do espírito de luta do grupo". Ele disse "Foi um grande dia", e essa frase, proferida à luz do crepúsculo e dos flashes dos fotógrafos, ao final de uma partida em que o artilheiro tinha brilhado, adquiriu uma ressonância épica. Parecia o Henrique 5º de Shakespeare diante de seus homens, depois de uma batalha, dizendo para a posteridade: "We few, we happy few...". Ronaldo já tinha mostrado antes sensibilidade para a dimensão cênica, quase operística, que pode assumir a entrevista de um astro à beira do campo. Depois de marcar seu primeiro gol com a camisa corintiana, contra o Palmeiras, ele dissera: "Este momento [o do gol], modéstia à parte, eu domino à perfeição". Frases assim não são feitas para serem esquecidas depois do noticiário das oito. São para ficar.
A fala épica está para Ronaldo como a fala malandra para Romário ("Quando eu nasci, Deus disse: "Esse é o cara".") ou a fala melodramática para Maradona ("Cortaram minhas pernas", "Cada gol da Bolívia foi uma punhalada no meu peito"). Quando um jogador encontra a sua língua própria, quase tudo o que ele diz é relevante. O falante nem precisa ser um grande craque, a frase nem precisa ser brilhante. Um dos registros que mais me encantam é o da autoironia zombeteira. Perguntaram a Serginho Chulapa quando ele estava na Espanha com a seleção brasileira, em 1982, se ele se incomodaria de ficar no banco. A resposta: "Para quem nasceu pelado na Casa Verde e está jogando bola na Espanha, está bom demais". Numa reportagem de TV com Dario, o Dadá Maravilha, o ex-jogador, agarrado às redes de um gol, contemplou entre melancólico e gozador o estádio vazio e exclamou: "Ah! Por que Deus envelheceu o Dadá?".
Nos momentos de baixo-astral, recorro sempre à frase do Chulapa ou à frase do Dadá para sorrir e salvar o dia.

jgcouto@uol.com.br


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