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FUTEBOL
Dona Luísa, seu Júlio e Felipão
MÁRIO MAGALHÃES
COLUNISTA DA FOLHA
O nome dele, com certeza,
era Júlio. O dela, se a memória por uma vez não trai, Luísa.
Beiravam os 80 anos. Viviam em
um apartamento de quarto andar na rua Santa Marta, Lisboa.
Pertinho da avenida da Liberdade, onde ontem multidões de portugueses festejaram o triunfo.
Seu Júlio falava pouco. Dona
Luísa compensava -falava pelos
dois. Tinha uma obsessão desde
meio século atrás, quando o tipo
pacato do marido a ninguém
causava impressão. "O Júlio não é
parvo, não é parvo", repetia. Eu
adorava provocar-lhes: "Passei
hoje pela ponte 25 de Abril".
"Ponte Salazar!", retrucavam,
furiosos, insistindo no velho nome
já trocado. Ela subia a escadaria
em espiral, do prédio antigo sem
elevador, e suspirava cansada:
"Ai, que saudade do António". O
dito cujo, ditador António de Oliveira Salazar, um dia parecera-lhe imortal. Morrera muito tempo atrás.
Depois de 16 anos de Revolução
dos Cravos, ganhavam uma pensão magra. Em compensação, o
aluguel, congelado, saía mais barato que um engradado de garrafinhas de um sumo de maçã chinfrim e saboroso cuja marca o tempo apagou da lembrança. Não
poderiam ser despejados enquanto vivessem.
Alugavam dois quartos para
engordar as finanças. Passei semanas morando ali. Quando me
assentara em Cascais, fui assistir
com eles a um confronto célebre
da Copa de 90: Inglaterra e Camarões, 2 a 2 no tempo normal, 1
a 0 para os europeus na prorrogação. Conosco estava um jovem
engenheiro do interior, o Miguel,
que continuava por lá.
Dona Luísa e seu Júlio torciam
pelos ingleses. Miguel e eu, pelos
camaroneses. Os velhinhos foram
calando. Olharam-se. Até que ela,
incrédula, constatou, na única
vez que a ouvi falar baixinho: "Ê,
pá! Vocês estão a torcer para os
pretos...". "Claro", confirmamos.
"Por quê?" Não resisti: "Quem sabe não é por isso mesmo...".
Odiavam os africanos que acorriam a Portugal em busca de trabalho. Também os brasileiros, de
todas as raças. "Isso tudo já foi
nosso", comentou seu Júlio, quando a TV exibiu reportagens sobre
colônias de antanho.
Outros tantos portugueses não
iam com a cara dos brasileiros
que desembarcavam onde outrora haviam embarcado seus antepassados. Era uma reticência atávica. Por séculos, mandaram gente sem-fim para além-mar. A nação que construiu a Escola de Sagres acostumou-se com seus emigrantes. Não com os imigrantes
que agora acolhia com pé e meio
atrás. Os brasileiros não contribuíam. Nos jornais, eram mais
assíduos nas páginas de polícia.
O sucesso de Luiz Felipe Scolari
na seleção portuguesa talvez indique que as coisas tenham mudado. Pelo menos um pouquinho.
Nos tropeços, não falta dedo a
acusar sua condição de estrangeiro. Mas, já por mais de uma semana, um país inteiro, Portugal,
se comove com seu time dirigido
por um técnico brasileiro. Felipão
diminui o oceano entre almas, no
fundo, semelhantes. O que pensariam seu Júlio e dona Luísa?
Paixão e coragem
A seleção portuguesa que bateu
a inglesa é inferior tecnicamente. Ganhou com as armas do
seu técnico: cabeça, paixão e
coragem. Estrangulou o oponente no seu campo, depois do
golaço de Owen. Jogou com a
paixão que sobra em Scolari.
Ele teve a coragem de acabar
com seu meio-campo e encher-se de atacantes para buscar o
empate. Contra a vontade dos
jornalistas, escalou na Eurocopa o goleiro Ricardo, decidiu.
No segundo tempo, botou Postiga no lugar do apático Figo.
Postiga empatou em 1 a 1. Peitou oposições, convocou e fez
do brasileiro Deco -limitado,
porém útil- seu titular. A coragem de Portugal contra a pusilanimidade da Inglaterra, eis
o retrato do emocionante e
inesquecível jogo de ontem.
E-mail
mario.magalhaes@uol.com.br
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