São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2008 |
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JOSÉ GERALDO COUTO Inimigos íntimos
A REDE de TV norte-americana CNN publicou em seu site nesta semana um ranking mundial dos confrontos de maior rivalidade no futebol. O único clássico brasileiro entre os "dez mais" (em nono) é Corinthians x Palmeiras. Na lista da CNN, o primeiro lugar é do derby escocês Rangers x Celtics, seguido do clássico portenho Boca Juniors x River Plate. O ranking é discutível, claro. Não há como mensurar o "grau de rivalidade" de um confronto. Ficaram de fora, por exemplo, Milan x Internazionale e Real Madrid x Barcelona, entre outros duelos mortais. No caso brasileiro, por que o escolhido foi Corinthians x Palmeiras, e não, digamos, o Gre-Nal, o Fla-Flu, Cruzeiro x Atlético-MG? A CNN não explica, mas pouco importa. O interessante é a coisa em si, a persistência de sentimentos tão apaixonados -e aparentemente gratuitos- de rivalidade no mundo moderno. Alguns desses duelos têm origens religiosas, como o que contrapõe os católicos do Celtics e os protestantes do Rangers. Outros têm raízes sociais (o proletariado do Milan contra a burguesia da Inter) ou políticas (os monarquistas do Real Madrid em oposição aos republicanos do Barça). Com o tempo, essas marcas de origem se diluem. Algumas duram mais: o Rangers, fundado em 1872, só aceitou em suas fileiras um jogador católico (Mo Johnston) em 1989 e, ainda assim, sob violentos protestos do núcleo duro de sua torcida. Corinthians e Palmeiras têm suas raízes no proletariado e na pequena burguesia paulistana do início do século 20. O Corinthians, fundado por operários e artesãos, logo se tornou o clube das camadas mais pobres da cidade, dos negros, dos imigrantes nordestinos. O Palmeiras, evidentemente, nutriu-se da colônia italiana, tanto de seus estratos mais pobres como da classe média. De lá para cá, muita coisa mudou. Há muitos negros e nordestinos na torcida alviverde e outros tantos italianos (Olivetto, Citadini...) na alvinegra. Mas a rivalidade não arrefeceu com o passar do tempo. Por quê? Não há uma resposta simples, evidentemente, mas uma pista para entender o fenômeno está na sobrevivência do que o historiador Hilário Franco Júnior chama de "espírito clânico" (ou seja, de clã). No livro "A Dança dos Deuses - Futebol, Sociedade, Cultura", ele observa que a generalização da democracia nas sociedades industriais provocou "a perda de identidades grupais que tinham sido essenciais nos séculos anteriores". A consciência de pertencer a determinada comunidade (família tradicional, confraria, corporação de ofício etc.) foi abafada pela noção homogeneizadora de cidadania. O futebol permite a formação de novos laços de identidade -e de oposição ao "outro". Uma identidade que o sujeito carrega até depois da morte: é comum o caixão do torcedor ser envolvido com a bandeira de seu clube. E uma oposição que leva muitas vezes à tentativa de destruição física do rival: estão aí os assassinatos, linchamentos e batalhas campais como prova. Enquanto permanece na esfera do simbólico, a rivalidade futebolística ajuda a sociedade a se manter em equilíbrio. Quando desborda, salve-se quem puder. jgcouto@uol.com.br
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