São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

Elogio da bunda


Felipão vetou os glúteos avantajados na seleção portuguesa, mas o jogo de quadris é fundamental


LUIZ FELIPE Scolari vetou as bundas grandes na seleção portuguesa. Seu pressuposto é o de que um glúteo avantajado denuncia desleixo com a preparação física. Está certíssimo o comandante luso-gaúcho, como quase sempre.
Mas isso não me impede de fazer aqui o elogio da bunda. A começar pela palavra em si. "Bunda", que já foi considerada palavrão, é um lindo vocábulo, redondo e macio como aquilo que designa. Importamos a bunda -quero dizer, a palavra- do quimbundo, que, segundo o Houaiss, é "língua da família banta, falada em Angola pelos ambundos".
Bunda, banto, quimbundo, ambundo: abundam as vogais anasaladas nos termos que os escravos nos trouxeram no porão dos navios negreiros. Pois bem: quando se elogia o jeito brasileiro de jogar futebol, costuma-se dizer que nossos craques têm "jogo de cintura" (ao contrário dos europeus de antanho, que tinham "cintura dura"). Ora, para que haja cintura, é preciso que haja bunda -ou, se preferirem, ancas, quadris. O côncavo não existe sem o convexo, e vice- versa. Curva para dentro, curva para fora. É óbvio que o corpo masculino não possui a mesma sinuosidade generosa do feminino, mas ainda assim, para jogar futebol, bem como para sambar, não se aconselham os físicos inteiramente retilíneos. A associação entre o futebol e o samba não é gratuita.
Não se trata tampouco de concessão ao clichê ("o brasileiro joga como quem samba"). Existe de fato uma ligação entre essas duas manifestações da arte afro-brasileira. Prova-o uma preciosa declaração de Domingos da Guia, publicada no livro "No País do Futebol", de Luiz Henrique de Toledo. Com a palavra, o Divino: "Ainda garoto eu tinha medo de jogar futebol porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo só porque fazia uma falta, nem isso às vezes. Meu irmão mais velho me dizia: malandro é o gato, que sempre cai de pé... tu não é bom de baile? Eu era bom de baile mesmo e isso me ajudou em campo... gingava muito... sabe que eu me lembrava deles... o tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba".
Gingar para evitar a truculência, o confronto físico. Malandragem a serviço da arte. Futebol como dança. Quanta coisa podemos extrair dessas sábias palavras! Entre todos os jogadores bundudos e bamboleantes, costumo destacar um que me parece ser o protótipo da estirpe: Edu, meu conterrâneo de Jaú, ponta-esquerda que brilhou no Santos dos anos 60 e 70 e disputou três Copas do Mundo (como reserva).
Avançando aos requebros sobre o adversário, "penteando" a bola com o pé esquerdo, oferecendo-a lasciva ao outro, apenas para roubá-la de forma desconcertante no último instante, Edu expressava em seu jogo a sensualidade venenosa da cobra, a negaça da sedução amorosa. O futebol, entre tantas outras coisas, pode ser um balé erótico. Graças à festejada bunda.

jgcouto@uol.com.br


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