São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 2001

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FUTEBOL

Espírito de "rachão"

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Se o futebol não é um mundo isolado, se ele é permeável ao que acontece na sociedade -como tentei mostrar aqui na última coluna-, acredito piamente também no trânsito oposto, ou seja: o que ocorre nas quatro linhas pode influenciar de algum modo (ou de inúmeros modos) o lado de fora.
Em outras palavras: o futebol não só reflete a sociedade, mas se reflete nela, assim como a arte e a literatura contribuem para a conformação da sensibilidade e da inteligência de um povo.
Um jogo ruim e sem inspiração pode estragar o fim-de-semana de quem o vê.
Um campeonato feito de jogos assim pode acentuar a depressão de um país inteiro.
Por outro lado, posso confessar que um único gol de Pelé -ou a lembrança dele- já me salvou da fossa inúmeras vezes, assim como seus mil e tantos gols salvaram o Brasil do complexo de inferioridade.
Uma bela jogada inspira e revitaliza, faz renascer -ainda que fugazmente- a esperança de que o homem tenha salvação, o país tenha salvação, o mundo tenha salvação.
Pelo menos comigo acontece assim.
Cada vez que vou ao estádio, ou cada vez que entro em campo para jogar uma "pelada", é como se o mundo voltasse ao minuto zero, ao primeiro dia da criação.
Volto a ser uma criança que acredita que naquelas quatro linhas tudo pode acontecer: prodígios, aventuras, dramas.
Assim como eu, muita gente vai ao estádio para sonhar.
Não é bem uma evasão (ou uma "alienação", como costumava dizer a esquerda mais dogmática), mas quase o contrário: um mergulho numa dimensão em que as sensações são mais intensas e vívidas do que no prosaico cotidiano.
Alguém que já tenha visto um menino "viajar" sozinho em seu quarto com um jogo de futebol de botão sabe bem do que estou falando: é o espetáculo da vida que vibra naquele lotado estádio imaginário.
Quem vai ao futebol com esse espírito aberto sabe que um jogo pode oferecer lições concentradas de coragem, invenção, solidariedade, improvisação, argúcia, covardia, humor, esperteza, medo e toda a gama das experiências humanas.
Uma bola entre as pernas vale por uma aula de humilhação, um chutão para a arquibancada é uma rude declaração de princípios.
Quando a Ponte Preta fez seu terceiro gol, na tarde de anteontem, contra o Palmeiras, depois de uma trama diabólica entre quatro jogadores, o ex-craque Zenon, comentando a partida para o canal Premiere (de pay-per-view), teve uma expressão feliz: "Foi uma jogada de "rachão", de jogo recreativo antes de uma partida oficial".
Meia hora depois, Tuta, do Palmeiras, fez um gol igualmente iluminado, de pura manha, cortando um zagueiro com a esquerda e chutando de direita no canto oposto do goleiro.
O jogo todo foi bom, mas esses dois lances bastariam para compensar as caneladas do resto da rodada, pois mostraram que ainda há esperança.
Penso que esse espírito alegre de "rachão", esse desejo de trabalhar se divertindo, de criar beleza suando a camisa, é algo que poderia redimir nosso futebol, tão degradado pelo salve-se quem puder, pelo cálculo frio, pela falta de escrúpulo, de vontade e de imaginação.
E isso -quero dizer, muitas jogadas como essas- pode ter um efeito benéfico sobre o torcedor que vai ao estádio, e mesmo sobre o cidadão que vê distraidamente os gols da rodada no telejornal noturno.
Soterrado pelas notícias de guerras, massacres em presídios, crimes ecológicos, grotescas corrupções, esse indivíduo comprovaria o milagre de que alguém naquele dia se dedicou a produzir beleza com os pés.
Uma suíte de Bach torna muito mais humano o homem porque lhe mostra as alturas a que seu espírito pode se elevar, muito acima do triste perde-e-ganha do cotidiano.
Uma partida de futebol é, obviamente, algo mais modesto, mais efêmero, menos universal que a música de Bach.
Mas seu efeito pode ser igualmente salutar em tempos tão sórdidos como os atuais, em que prevalecem as lições de egoísmo e estupidez dos "No limite" e dos "Topa tudo por dinheiro", aberrações dominicais que só são aceitas passivamente porque nossa sensibilidade está profundamente embotada.
Convoco todos os craques do mundo, de Bergkamp a Piá, de César a Batistuta, de Zidane a Dodô, a nos livrar dessas trevas. O mundo agradecerá.

E-mail: jgcouto@uol.com.br


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