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FUTEBOL
Espírito de "rachão"
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Se o futebol não é um
mundo isolado, se ele é permeável ao que acontece na sociedade -como tentei mostrar
aqui na última coluna-, acredito piamente também no trânsito oposto, ou seja: o que ocorre
nas quatro linhas pode influenciar de algum modo (ou de inúmeros modos) o lado de fora.
Em outras palavras: o futebol
não só reflete a sociedade, mas
se reflete nela, assim como a arte
e a literatura contribuem para a
conformação da sensibilidade e
da inteligência de um povo.
Um jogo ruim e sem inspiração pode estragar o fim-de-semana de quem o vê.
Um campeonato feito de jogos
assim pode acentuar a depressão de um país inteiro.
Por outro lado, posso confessar que um único gol de Pelé
-ou a lembrança dele- já me
salvou da fossa inúmeras vezes,
assim como seus mil e tantos
gols salvaram o Brasil do complexo de inferioridade.
Uma bela jogada inspira e revitaliza, faz renascer -ainda
que fugazmente- a esperança
de que o homem tenha salvação, o país tenha salvação, o
mundo tenha salvação.
Pelo menos comigo acontece
assim.
Cada vez que vou ao estádio,
ou cada vez que entro em campo para jogar uma "pelada", é
como se o mundo voltasse ao
minuto zero, ao primeiro dia da
criação.
Volto a ser uma criança que
acredita que naquelas quatro linhas tudo pode acontecer: prodígios, aventuras, dramas.
Assim como eu, muita gente
vai ao estádio para sonhar.
Não é bem uma evasão (ou
uma "alienação", como costumava dizer a esquerda mais
dogmática), mas quase o contrário: um mergulho numa dimensão em que as sensações são
mais intensas e vívidas do que
no prosaico cotidiano.
Alguém que já tenha visto um
menino "viajar" sozinho em seu
quarto com um jogo de futebol
de botão sabe bem do que estou
falando: é o espetáculo da vida
que vibra naquele lotado estádio imaginário.
Quem vai ao futebol com esse
espírito aberto sabe que um jogo
pode oferecer lições concentradas de coragem, invenção, solidariedade, improvisação, argúcia, covardia, humor, esperteza,
medo e toda a gama das experiências humanas.
Uma bola entre as pernas vale
por uma aula de humilhação,
um chutão para a arquibancada é uma rude declaração de
princípios.
Quando a Ponte Preta fez seu
terceiro gol, na tarde de anteontem, contra o Palmeiras, depois
de uma trama diabólica entre
quatro jogadores, o ex-craque
Zenon, comentando a partida
para o canal Premiere (de pay-per-view), teve uma expressão
feliz: "Foi uma jogada de "rachão", de jogo recreativo antes
de uma partida oficial".
Meia hora depois, Tuta, do
Palmeiras, fez um gol igualmente iluminado, de pura manha,
cortando um zagueiro com a esquerda e chutando de direita no
canto oposto do goleiro.
O jogo todo foi bom, mas esses
dois lances bastariam para
compensar as caneladas do resto da rodada, pois mostraram
que ainda há esperança.
Penso que esse espírito alegre
de "rachão", esse desejo de trabalhar se divertindo, de criar beleza suando a camisa, é algo que
poderia redimir nosso futebol,
tão degradado pelo salve-se
quem puder, pelo cálculo frio,
pela falta de escrúpulo, de vontade e de imaginação.
E isso -quero dizer, muitas
jogadas como essas- pode ter
um efeito benéfico sobre o torcedor que vai ao estádio, e mesmo
sobre o cidadão que vê distraidamente os gols da rodada no
telejornal noturno.
Soterrado pelas notícias de
guerras, massacres em presídios,
crimes ecológicos, grotescas corrupções, esse indivíduo comprovaria o milagre de que alguém
naquele dia se dedicou a produzir beleza com os pés.
Uma suíte de Bach torna muito mais humano o homem porque lhe mostra as alturas a que
seu espírito pode se elevar, muito acima do triste perde-e-ganha do cotidiano.
Uma partida de futebol é, obviamente, algo mais modesto,
mais efêmero, menos universal
que a música de Bach.
Mas seu efeito pode ser igualmente salutar em tempos tão
sórdidos como os atuais, em que
prevalecem as lições de egoísmo
e estupidez dos "No limite" e dos
"Topa tudo por dinheiro", aberrações dominicais que só são
aceitas passivamente porque
nossa sensibilidade está profundamente embotada.
Convoco todos os craques do
mundo, de Bergkamp a Piá, de
César a Batistuta, de Zidane a
Dodô, a nos livrar dessas trevas.
O mundo agradecerá.
E-mail: jgcouto@uol.com.br
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