São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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O mundo em duas pernas

RODOLFO LUCENA
Editor de Informática

Ele faz duas maratonas por dia -às vezes mais, às vezes menos. Já percorreu 23 países, mais de 30 mil quilômetros, ao longo de quase três anos. Seu objetivo: ser o primeiro homem a fazer a volta ao mundo correndo. É O-Homem-Que-Corre, um inglês de 32 anos que trocou um curso de psicologia, em Londres, pela estrada.
Robert Garside, o autodenominado The Runningman, começou a aventura às 10h30 do dia 7 de dezembro de 1996, em Piccadilly Circus, no centro de Londres, sem financiadores, sem patrocínio.
Amanhã ele deve chegar a São Paulo e em breve pretende festejar a assinatura de um contrato de US$ 500 mil com uma empresa norte-americana. Vai garantir seu sustento até o fim da empreitada e por um bom tempo depois.
O contrato inclui a produção de documentários, melhorias no seu site na Internet (www.therunningman.com) e, possivelmente, o livro que Garside vem escrevendo, contando suas aventuras.
Não foram poucas: levou um tiro na Rússia, foi preso como espião na China, encontrou romance na Austrália, cruzou o Afeganistão em guerra civil, acordou com um escorpião no travesseiro e foi perseguido por assaltantes.
Ele segue em um ritmo leve, mas carrega pelo menos 10 kg às costas. E procura sempre chegar a alguma cidade, ter um destino a cada dia. Corre de 40 km a 100 km por dia, mas já fez mais de 150 km de uma vez só, para sair da China. O segundo tiro mais longo foi de 145 km, no início do percurso, para rever a namorada em Paris.
Ele chegou ao Brasil há cerca de um mês, entrando pelo Chuí (RS). Já conheceu Florianópolis, deu uma boa parada em Curitiba e agora está na estrada, rumo a São Paulo, onde pretende chegar amanhã, às 16h, na praça da Sé.
Depois, vai para o Rio. Quer aprender a dançar samba e sonha em conhecer uma brasileira.
Leia os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha esta semana, por telefone, de Curitiba:
 

Folha - Por que você resolveu fazer essa corrida?
Robert Garside -
Já era corredor antes, tinha decidido virar profissional, mas depois vi que não era exatamente o que queria. Quando soube que ninguém ainda tinha dado a volta ao mundo, pensei que deveria fazer, porque era o tipo de coisa que eu achava que poderia fazer. Correr maratonas é ok, mas não é suficiente.

Folha - O que você fez para financiar seu projeto?
Garside -
Isso foi muito difícil no início. Não consegui nenhum apoio. Quando eu comecei, tive de dormir em delegacias de polícia, na casa de pessoas. Devagar, comecei a ganhar algum dinheiro, fazendo alguns projetos, vendendo fotos. Mas nunca é suficiente, você precisa sempre mais.

Folha - Mas agora você já tem bastante apoio, não?
Garside -
Estou em negociações para um contrato de US$ 500 mil para produzir um documentário sobre a corrida. O web site que você vê agora é ok, mas logo teremos uma equipe de TV mandando reportagens via satélite. É uma empresa que produz filmes nos EUA. E estou terminando meu primeiro livro. É por causa dele que estou um pouco atrasado; eu deveria estar no Panamá agora.

Folha - Você corre todos os dias?
Garside -
É difícil dizer. Nos últimos meses, não, porque venho fazendo um monte de coisas, tentando fechar contratos. Procuro fazer 400 km por semana. Mas paro uns dias aqui, uma semana lá, para escrever o livro, porque preciso do dinheiro. Mas vou recuperar o tempo. Depois do Brasil, só vou correr, sem interrupções.

Folha - Como tem sido sua corrida no Brasil?
Garside -
O Brasil é legal, porque é muito bonito, ao longo da costa. E não é muito caro, não tanto quanto a Argentina. É um país amigável e não parece muito perigoso. Vou ter problemas logísticos na selva amazônica. Não sei muito sobre florestas. Minha maior preocupação é malária. E vou precisar carregar coisas, dicionários para português e espanhol, equipamento especial para enfrentar a umidade e mosquitos.
Pretendo também conseguir permissão para carregar uma arma, porque estou preocupado com os animais. Vou estar sozinho, e você não consegue negociar com uma serpente. Até agora, não usei armas. Na fronteira com a Venezuela, entrego a arma.

Folha - Até agora, como você está pagando sua corrida? E quanto ela vai custar, no total?
Garside -
Estou pagando tudo. É muito difícil. Vendo minhas fotos para a agência Gama, meus vídeos vão para Nova York. Você tem de se marquetear. Consigo dinheiro, apoios (no site na Internet, há agradecimentos a companhias aéreas, empresas de produtos esportivos etc) e sigo em frente. Acho que a corrida inteira vai custar em torno de US$ 400 mil.Vou faturar com os documentários (montou um empresa para representá-lo, a The Runningman Media). Mas a corrida não tem a ver com dinheiro.

Folha - Com o que tem a ver?
Garside -
É sobre correr, é sobre liberdade. Não tenho propriedades, bens materiais. Eu tinha muito, tinha tudo o que qualquer pessoa tem, mas não era o que eu queria naquele ponto da minha vida. Você tem de carregar todas essas coisas, elas possuem você, você precisa tomar conta delas, e eu queria liberdade para explorar o mundo. Imagine explorar o mundo... É sensacional. Quando corri pela Índia, dormi numa delegacia de polícia, não tinha dinheiro, me davam comida. Corria 60 km por dia, no calor, entre as pessoas, e aprendia coisas.

Folha - Como você conseguia ajuda?
Garside -
Eu tenho material para tradução. Sempre me apresento. Vou a uma delegacia de polícia... Não importa onde você esteja, é preciso tentar ficar limpo e arrumado. Eu tento não parecer com uma espécie de Forrest Gump barbado, porque isso não funciona, as pessoas pensam que você é um vagabundo.

Folha - Você está no "Guinness"?
Garside -
Já tenho o recorde mundial de distância corrida (segundo o livro, o percurso mais longo foi de 17.071 km, pelo norte-americano Robert Sweetgall de outubro de 1982 a julho de 1983), mas não entrei com a documentação. Como ainda estou correndo, parece bobo pedir o registro agora, porque minha quilometragem está aumentando. Para dizer a verdade, já não dou tanta importância. Mas vou pedir o registro pela primeira volta ao mundo correndo e pela maior distância corrida. Se conseguir, ótimo.

Folha - Mesmo assim, você está documentando seu trajeto.
Garside -
Paro nas delegacias de polícia para que carimbem e coloquem meu dia e horário de chegada e de partida. Eu me filmo a cada 10 km e filmo lugares que possam ser reconhecidos. As fitas são guardadas sem ser editadas. E tenho os cadernos de registros. São, na verdade, folhas soltas, que, quando acabam, mando pelo correio para minha mãe.

Folha - Qual a pior situação que você enfrentou?
Garside -
Na Rússia, alguém atirou em mim, mas o tiro acertou a mochila. Foi assustador. Estava perto de Moscou. Foi cigano ou algum babaca, eu continuei correndo. As dificuldades maiores foram no Afeganistão, porque havia uma guerra civil lá. Tive problemas com a altitude no Himalaia. Fui preso na China suspeito de espionagem; eles são muito desconfiados de ocidentais.

Folha - E o melhor momento?
Garside -
A corrida toda é legal. Os dias são cansativos, mas você sente que está ganhando, conhecendo coisas novas, ficando saudável. Alguns momentos especiais: correr o primeiro país, o primeiro continente, terminar o Himalaia. Japão e Austrália foram interessantes. O Brasil está sendo muito bom, é um lugar amigável.

Folha - No site, você fala com carinho de uma australiana. A corrida também teve romance?
Garside -
(risos) Com certeza, sim, na Austrália. Lucy foi muito legal. Quando você encontra alguém que tem as mesmas idéias, mesma atitudes... Ela foi assim. Ela chegou e disse que ia seguir comigo. Pegou sua bicicleta e veio por cerca de 900 km. Carregou minha mochila durante uns dois meses. Foi muito legal. Ela ia vir para a América do Sul, mas está no final do curso de medicina.

Folha - Como você enfrenta os problemas comuns dos corredores, bolhas, machucados, dores?
Garside -
Corri praticamente todos os dias dos últimos dez anos. Nunca me contundi. Talvez seja porque você se machuca quando corre rápido, e eu corro no ritmo que consigo fazer.

Folha - Quantos países você já percorreu até agora?
Garside -
O Brasil é o número 24. Foram entre 30 mil e 35 mil km. Deveria ter feito mais. Mas quando você corre só, as coisas não são simples, há muito a fazer. Outras pessoas que deram a volta ao mundo tinham apoio. Cavalos, camelos, jipes. E estavam caminhando. Não tenho nada disso. Somos eu e minha mochila. E estou correndo, não caminhando.

Folha - Do Brasil, você segue até os EUA e depois percorre a África e a Antártida. O que vai fazer quando terminar?
Garside -
Se acertar o contrato, vou para a Austrália. Vou arranjar uma casa, um carro, e ter dinheiro no banco. Estou montando uma companhia para produzir roupas esportivas, mas isso leva tempo.

Folha - Na Austrália, pretende reencontrar Lucy?
Garside -
Lucy será uma amiga. Quem sabe? Não tenho planos. Mas adoraria conhecer uma brasileira. São belas. Têm olhos lindos. Vamos ver o que acontece. Há mulheres bonitas em todo o mundo, mas as brasileiras são realmente legais. Gostaria de dançar o samba. Vou ver se danço no Rio. Parece mais divertido que o tango. Não é tão sério. Aliás, não é nem um pouco sério.


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