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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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FUTEBOL

Segundas intenções

TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Discute-se muito no futebol se o jogador teve ou não intenção de acertar o adversário, de fazer pênalti, de pôr a mão na bola dentro da área e outras situações parecidas. Vou divagar sobre o assunto. Divagar é preciso.
A intenção está relacionada ao desejo consciente, à vontade e ao pensamento. É a primeira intenção. A segunda intenção, expressão que se tornou popular, é o pensamento consciente que se esconde, enquanto se manifesta o outro.
O ato falho é o desejo inconsciente que se expressa no lugar da intenção. Para a psicanálise, o ato falho é o real desejo, que já foi consciente e, reprimido, se tornou inconsciente. O ato falho é diferente da segunda intenção porque é inconsciente.
Freud escreveu um livro, sobre o ato falho, que continua atual e popular. É clássico o ato falho do(a) palestrante que está louco(a) para se encontrar com a pessoa amada e inicia o discurso com as palavras: "Está encerrada a sessão". Aí percebe o engano, pede desculpas e diz que foi uma distração.
Volto ao futebol. Edu Dracena teve intenção de quebrar o nariz do Alex Alves, foi uma agressão involuntária, um acidente ou um ato falho? Nem Freud explica. Não acredito que ele tenha planejado a agressão e nem que ela foi totalmente por acaso. O zagueiro subiu para cabecear a bola e no meio do caminho, sem pensar, num impulso agressivo, estendeu o braço e acertou uma cotovelada no atacante.
Essas faltas involuntárias, às vezes violentas, acontecem com freqüência no futebol. O jogador dá um carrinho na bola, solta a perna e atropela o adversário. Luis Fabiano tem o hábito de abrir os braços para afastar o marcador e atinge a face do rival. Augusto Recife foi desarmar o jogador do Inter e chutou-lhe o tornozelo.
Não sou também tão ingênuo para achar que todas as faltas violentas são involuntárias. Porém elas são maioria. O árbitro e a Justiça julgam o fato, não a intenção. Por isso, a regra fala em imprudência e em força desproporcional. Não dá tempo também para o árbitro, numa fração de segundos, diferenciar se foi intencional ou não.
Mas os árbitros precisam ter o bom senso. Essa não é uma qualidade frequente no ser humano, de separar as pequenas faltas leves, comuns, das violentas. Ter critério não é unificar as diferenças.
Edu Dracena, com ou sem intenção, foi imprudente e violento e merecia ter sido expulso e suspenso. Augusto Recife foi imprudente, mas cometeu uma falta leve, comum, e não deveria levar o cartão vermelho. Os dois árbitros decidiram o contrário.
Alguns jogadores cometem faltas violentas, não são expulsos e passam a fazer isso com frequência. Criam o hábito. Eles têm de ser punidos até aprenderem.
Nenhum defensor tem também a intenção de cometer pênalti e colocar a mão na bola dentro da área, com exceção da bola que vai entrar e o jogador impede com as mãos. Nesse caso é burrice, porque ele vai ser expulso e o pênalti será marcado.
Com ou sem intenção, é pênalti se o jogador movimenta o braço e corta a trajetória da bola. Não é o caso do Leandro contra o Inter, que estendeu o corpo e tocou a bola com o peito. Isso ficou ainda mais claro pela trajetória da bola. Vou parar por aqui. Não tinha a intenção de estender o assunto. Já divaguei demais.

Todo menino é um rei
Pelé completou 63 anos. Não parece. Ao vê-lo na televisão, lembrei do meu querido pai. Em 66, fui convocado pela primeira vez para a seleção que ia disputar a Copa do Mundo e conheci o Pelé. A equipe fez um jogo-treino contra o Cruzeiro, em Caxambu (MG), e meu pai foi me visitar.
Conversamos no hotel da seleção, e ele, após me dar instruções técnicas, como fazia sempre, perguntou: "Você já conhece bem o Pelé?". Respondi: "Sim, ele é legal, vou apresentá-lo a você".
Meu pai não conseguia falar, gaguejava, e o Pelé, como sempre, brincava e sorria. Pelé não tinha pose de rei. No final, meu pai pediu um autógrafo e chorou. Para ele, a palavra rei não era um simples apelido, um título simbólico dado ao melhor jogador do mundo. No imaginário de meu pai, Pelé era um rei de verdade, como os que sonhara na infância.
Toda criança sonha um dia ser um rei ou rainha. Na verdade, ela não sonha. No seu pensamento, ela é. A criança cresce, o sonho persiste, mas ela aprende que a vida não é um conto de fadas.

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