São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 2006

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ANÁLISE

Os brasileiros da África

ANANI DZIDZIENYO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com o tempo, tornou-se prática mais que comum se referir ao Brasil como o país com o segundo maior número de pessoas de ascendência africana.
Basta dizer que, embora a alegação talvez fique devendo em termos de precisão, ela ainda assim serve para sublinhar as perenes ambigüidades quanto ao lugar da África continental no imaginário brasileiro. E, por isso, a histórica partida de hoje oferece uma oportunidade única a africanos e brasileiros para que considerem sua longa e complicada relação.
Desconsideradas todas as questões históricas, eu, por exemplo, não pretendo assistir ao jogo, porque tenho certeza de que não conseguiria agüentar. Há apenas duas semanas, quem poderia ter imaginado uma partida entre a seleção brasileira e Gana? Mas, no futebol, especialmente na Copa, duas semanas podem ser um tempo muito longo.
Meu lado otimista gostaria de assistir -depois do jogo, claro, em videoteipe- uma partida excelente, na qual os "brasileiros da África" deslumbrassem o mundo com seu estilo inovador, enquanto seus heróis e modelos, os brasileiros, ascenderiam a patamares ainda mais elevados, sem esquecer o histórico momento de 1958.
Bem, era essa a minha sensação até ler a Folha de sábado. Os jogadores brasileiros, descobri, estavam muito felizes porque enfrentariam a seleção de Gana -a vitória seria fácil, já que "os africanos jogam sem disciplina". Outro artigo contemplava uma exposição, depois da Copa, que "homenagearia a África", não a "África primitiva ou étnica", mas a África que "influenciou a miscigenação brasileira". Deus nos poupe de tanta besteira.
Procurando consolo na História, minhas lembranças retornaram à Copa de 1978. No dia do jogo entre Peru e Brasil, o rei do povo asante, Otumfuo Opoku Ware, e sua comitiva foram recebidos no Palácio do Planalto pelo presidente Geisel. O Brasil estava presenciando pela primeira vez o orgulho, a pompa e o espetáculo de uma comitiva ganense. E os visitantes, é bom lembrar, expressaram com muita clareza sua entusiástica torcida pelo Brasil.
O fascínio dos ganenses pelo futebol brasileiro transcende os "onze em campo" (com minhas desculpas a Edilberto Coutinho) e o brilho das jogadas. Duas décadas antes da visita de Otumfuo -no ano que se seguiu ao da independência de Gana, para ser exato- os ganenses, como o resto do mundo, assistiram às imagens de brasileiros que estavam fazendo história na Suécia, e, aos olhos dos ganenses, muitos daqueles jogadores eram negros.
A propósito, a Copa de 1958 foi um momento de definição em minha carreira e sobre o que penso dela. Ver tantos negros no time brasileiro estendeu meus conhecimentos sobre a diáspora africana.
E mais um pouco de História: em 1967/1968, Carlos Alberto Parreira treinou os Estrelas Negras de Gana. Quem sabe que efeito essa experiência possa ter exercido sobre o seu atual estilo de trabalho.
De qualquer forma, a hora se aproxima. Meu plano é me isolar durante todo o jogo. Não atenderei a ninguém, e em lugar disso pretendo me acalmar ao som de "Mo Bekae Me", de Samuel Owusu, e "Saudades da Guanabara", de Beth Carvalho.


ANANI DZIDZIENYO é ganense e professor de Estudos Brasileiros da Universidade Brown, em Providence (Estados Unidos)

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