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"Deixa ele aí; se morrer, o médico avisa, se ficar bom, a gente busca"
DO ENVIADO A CAMPO GRANDE
Assim que pariu Ismael, há
19 anos, Vilma Evangelista ouviu do então marido, cujo nome
faz questão de não citar: "Deixa
ele aí no hospital. Se morrer, o
médico avisa. Se ele ficar bom, a
gente vem buscar". Vilma escolheu o filho e perdeu o marido.
Demorou, mas Ismael ficou
bom. Passou os seis primeiros
meses de vida na UTI. Só foi andar e falar com três anos.
"Por causa da bendita da bola", conta a mãe. "Ele ficou em
pé a primeira vez para correr
atrás de uma bola. E só aprendeu a falar para pedir uma bola
de presente."
Antes dos dez anos, Ismael
passou por dez cirurgias, incluindo um transplante de intestino. Livrou-se da colostomia (bolsa externa para drenagem intestinal) e lançou-se a
jogar futebol na rua, como todas as crianças da idade.
"Diziam que meu filho seria
um vegetal", relembra Vilma.
Ele, no entanto, contrariou
previsões médicas, ignorou as
proibições da mãe e, sobretudo,
nunca se importou com o fato
de ter o lado esquerdo do corpo
parcialmente paralisado.
"Jogava com os normais, na
rua, na escola, em todo lugar",
conta Ismael. "Tomava porrada. Ninguém pegava leve, caía,
me machucava bastante."
Aos 12 anos, foi levado por
um professor para o time de
atletismo da escola. Ganhou
medalhas correndo distâncias
curtas, mas nunca se empolgou
de verdade. O que ele queria
mesmo era jogar futebol.
"Ele vivia me dizendo:
"Quando o médico consertar
minha perna, vou chegar à seleção. Você vai ver, mãe"."
Há três anos, juntou-se ao
Pantanal, um dos três clubes de
futebol de paralisados cerebrais de Campo Grande.
Desde então, sai de casa todos os dias às 6h30, pega três
ônibus para chegar às 8h30 ao
campo onde seu time treina.
Usa a boca para calçar as
meias e tem a ajuda dos colegas
para amarrar as chuteiras.
Neste ano, cumpriu o que
prometera à mãe e finalmente
chegou à seleção brasileira sub--20, com a qual conquistou a
medalha de ouro nos Jogos Parapanamericanos disputados
em Medellín, em outubro.
"Fiz dois gols na final contra
a Argentina", diz, orgulhoso. "E
depois os caras nem quiseram
trocar de camisa com a gente."
Com os R$ 750 que ganha por
mês do bolsa-atleta, tem o
maior salário da casa de quatro
cômodos que divide com a mãe,
o padrasto e a irmã mais nova,
no Jardim Columbia, um terreno invadido na periferia de
Campo Grande.
Ismael, que ganhou o apelido
de "Obina" dos companheiros
por causa dos dentes salientes,
é tido como um dos jogadores
mais promissores da nova geração. É a estrela do campinho de
barro que fica exatamente em
frente à casa onde mora.
Não descuida do penteado
moicano e faz questão de jogar
com chuteiras coloridas.
Mesmo assim, diz que prefere estudar -está no primeiro
ano do ensino médio - e que
não vê futuro algum no esporte
que tanto gosta de praticar.
"Sei que isso daqui a pouco
acaba", diz, conformado. "Eu
vou ter que estudar."
(MF)
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