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Blumenau faz o preconceito rebolar
Ídolos engolem as ofensas, ensinam marcha atlética nas escolas, derrubam tabus e criam cidade repleta de campeões
Município não conhecia modalidade até os anos 80
e hoje abriga 15 campeões nacionais; atletas sonham com o ouro no Pan do Rio
Marlene Bergamo/Folha Imagem
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Calisto Sevegnani e Moacir Zimmerman puxam treinamento de marcha atlética em Blumenau (SC), cidade que já abriga 15 campeões nacionais da modalidade
GUILHERME ROSEGUINI
ENVIADO ESPECIAL A BLUMENAU
Sérgio Galdino mergulha em
um caleidoscópio de imagens e
sensações quando conversa
com atletas que cogitam abandonar a marcha atlética.
A memória resgata os passos
iniciais da carreira, os gritos de
"pára de rebolar, bichinha" e a
impressão de que seria impossível convencer habitantes de
uma cidade no interior de Santa Catarina a respeitar o praticante de uma modalidade pouco conhecida do atletismo.
Ao fim do rápido exame de
reminiscências, surge o discurso de incentivo. "Digo sempre
aos que querem desistir que o
pior do preconceito já passou.
Mudamos a cultura. Estamos
na terra da marcha atlética.
Aqui é o lugar para prosperar."
Trinta e sete anos, líder do
ranking brasileiro, casado e pai
de dois filhos, Galdino é o nome
mais importante de uma revolução rápida e curiosa.
Sua geração deu novo status
ao esporte do andar apressado,
no qual é preciso sacolejar o
quadril, e transformou Blumenau em um celeiro de talentos.
A cidade de 298 mil habitantes,
marcada pela imigração alemã
e italiana, abriga 15 campeões
brasileiros de marcha atlética.
É um domínio que impressiona. Nos rankings do país, homens e mulheres locais aparecem no topo ou entre os três
melhores em todas as categorias, dos 13 anos aos profissionais que buscam vaga no Pan.
"E pensar que, quando cheguei aqui, ninguém conhecia as
regras da prova", lembra o paranaense Ivo da Silva, que implementou o primeiro grupo de
marchadores, em 1983.
Galdino passou a integrar o
time dois anos depois, quando
ainda fazia bicos como servente
de pedreiro. Os impropérios
que ouvia ("era de veado para
baixo", afirma) viraram uma
das razões para persistir.
"As pessoas passaram a entender que marchar por 20 km
ou 50 km era um feito e tanto.
Os resultados surgiram, a imprensa passou a dar atenção, e
percebemos que poderíamos
mudar a cabeça das pessoas",
relata João Sendeski, ex-campeão brasileiro e agora técnico.
Ao lado de Ivo e Galdino, ele
decidiu levar a marcha para as
salas de aula de Blumenau nos
anos 90. Em universidades, estudantes de educação física
passaram a conhecer a técnica
do esporte. Nas escolas, crianças receberam estímulo para
executar os movimentos antes
que discursos machistas inibissem o aprendizado.
"As ações são simples. Eu
mando a garotada brincar de
pega-pega, mas digo que correr
é proibido. Pronto. Todos estão
marchando", lembra Sendeski.
Frutos não demoraram para
aparecer. Calisto Sevegnani, 21,
líder do ranking brasileiro sub-23, foi descoberto durante as
aulas. Instado a treinar com a
equipe de Blumenau, virou destaque e já pleiteia vaga no Pan.
"Na época em que o Galdino
começou, os motoristas buzinavam para ofender atletas.
Hoje, buzinam para incentivar,
pois a marcha virou marca."
O problema é que o preconceito não estava restrito aos espaços públicos. Às vezes, ele vinha de casa. Moacir Zimmerman, melhor do Brasil nos 20
km de marcha em pista, lembra
que seus pais fizeram cara feia
quando informados do esporte
que o filho resolvera praticar.
"Eles não queriam que eu ficasse rebolando por aí", recorda. A saída que encontrou para
resolver o impasse foi convidar
a família para um torneio.
Zimmerman triunfou na disputa e recebeu sinal verde para
se tornar um profissional.
Outros casos, porém, não tiveram final semelhante e motivaram nova ação de treinadores e esportistas da cidade.
Um circuito batizado de
"Passeio de Marcha e Caminhada" passou a ser promovido
nos bairros de Blumenau.
Crianças são convidadas a sair
de casa com a família e têm a
missão de completar percursos
de 1 km a 3 km. Correr é proibido. "No meio do povo a gente
solta os marchadores com brindes nos bolsos. Quem consegue
imitar os movimentos leva um
prêmio", conta Ivo da Silva.
Êxitos de projetos assim são
celebrados, mas toda a trupe
que pratica marcha na cidade
sabe que o ingresso de novos
adeptos depende também do
sucesso dos mais velhos.
Por isso, as atenções estão
voltadas ao Pan do Rio. Sevegnani, Zimmerman e até campeões mais jovens, como Herbert de Almeida, 19, querem levar o nome da cidade ao evento.
O mais experiente do grupo
raspou duas vezes no pódio.
Galdino terminou o Pan na
quarta posição em 1991 e em
2003. Reveses duros, mas que
não o fizeram esmorecer.
Ele ainda treina duas vezes
por dia ao lado de garotos 20
anos mais jovens. A energia, explica, vem da transformação
que conseguiu promover.
"Literalmente, eu rebolo para viver. E, quando vejo essa
molecada marchando em paz,
quando percebo que construí
um legado, fico com vontade de
ir além. Não é hora de parar."
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