São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2007

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Blumenau faz o preconceito rebolar

Ídolos engolem as ofensas, ensinam marcha atlética nas escolas, derrubam tabus e criam cidade repleta de campeões

Município não conhecia modalidade até os anos 80 e hoje abriga 15 campeões nacionais; atletas sonham com o ouro no Pan do Rio

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Calisto Sevegnani e Moacir Zimmerman puxam treinamento de marcha atlética em Blumenau (SC), cidade que já abriga 15 campeões nacionais da modalidade

GUILHERME ROSEGUINI
ENVIADO ESPECIAL A BLUMENAU

Sérgio Galdino mergulha em um caleidoscópio de imagens e sensações quando conversa com atletas que cogitam abandonar a marcha atlética.
A memória resgata os passos iniciais da carreira, os gritos de "pára de rebolar, bichinha" e a impressão de que seria impossível convencer habitantes de uma cidade no interior de Santa Catarina a respeitar o praticante de uma modalidade pouco conhecida do atletismo.
Ao fim do rápido exame de reminiscências, surge o discurso de incentivo. "Digo sempre aos que querem desistir que o pior do preconceito já passou. Mudamos a cultura. Estamos na terra da marcha atlética. Aqui é o lugar para prosperar."
Trinta e sete anos, líder do ranking brasileiro, casado e pai de dois filhos, Galdino é o nome mais importante de uma revolução rápida e curiosa.
Sua geração deu novo status ao esporte do andar apressado, no qual é preciso sacolejar o quadril, e transformou Blumenau em um celeiro de talentos. A cidade de 298 mil habitantes, marcada pela imigração alemã e italiana, abriga 15 campeões brasileiros de marcha atlética.
É um domínio que impressiona. Nos rankings do país, homens e mulheres locais aparecem no topo ou entre os três melhores em todas as categorias, dos 13 anos aos profissionais que buscam vaga no Pan.
"E pensar que, quando cheguei aqui, ninguém conhecia as regras da prova", lembra o paranaense Ivo da Silva, que implementou o primeiro grupo de marchadores, em 1983.
Galdino passou a integrar o time dois anos depois, quando ainda fazia bicos como servente de pedreiro. Os impropérios que ouvia ("era de veado para baixo", afirma) viraram uma das razões para persistir.
"As pessoas passaram a entender que marchar por 20 km ou 50 km era um feito e tanto. Os resultados surgiram, a imprensa passou a dar atenção, e percebemos que poderíamos mudar a cabeça das pessoas", relata João Sendeski, ex-campeão brasileiro e agora técnico.
Ao lado de Ivo e Galdino, ele decidiu levar a marcha para as salas de aula de Blumenau nos anos 90. Em universidades, estudantes de educação física passaram a conhecer a técnica do esporte. Nas escolas, crianças receberam estímulo para executar os movimentos antes que discursos machistas inibissem o aprendizado.
"As ações são simples. Eu mando a garotada brincar de pega-pega, mas digo que correr é proibido. Pronto. Todos estão marchando", lembra Sendeski.
Frutos não demoraram para aparecer. Calisto Sevegnani, 21, líder do ranking brasileiro sub-23, foi descoberto durante as aulas. Instado a treinar com a equipe de Blumenau, virou destaque e já pleiteia vaga no Pan.
"Na época em que o Galdino começou, os motoristas buzinavam para ofender atletas. Hoje, buzinam para incentivar, pois a marcha virou marca."
O problema é que o preconceito não estava restrito aos espaços públicos. Às vezes, ele vinha de casa. Moacir Zimmerman, melhor do Brasil nos 20 km de marcha em pista, lembra que seus pais fizeram cara feia quando informados do esporte que o filho resolvera praticar.
"Eles não queriam que eu ficasse rebolando por aí", recorda. A saída que encontrou para resolver o impasse foi convidar a família para um torneio.
Zimmerman triunfou na disputa e recebeu sinal verde para se tornar um profissional.
Outros casos, porém, não tiveram final semelhante e motivaram nova ação de treinadores e esportistas da cidade.
Um circuito batizado de "Passeio de Marcha e Caminhada" passou a ser promovido nos bairros de Blumenau. Crianças são convidadas a sair de casa com a família e têm a missão de completar percursos de 1 km a 3 km. Correr é proibido. "No meio do povo a gente solta os marchadores com brindes nos bolsos. Quem consegue imitar os movimentos leva um prêmio", conta Ivo da Silva.
Êxitos de projetos assim são celebrados, mas toda a trupe que pratica marcha na cidade sabe que o ingresso de novos adeptos depende também do sucesso dos mais velhos.
Por isso, as atenções estão voltadas ao Pan do Rio. Sevegnani, Zimmerman e até campeões mais jovens, como Herbert de Almeida, 19, querem levar o nome da cidade ao evento.
O mais experiente do grupo raspou duas vezes no pódio. Galdino terminou o Pan na quarta posição em 1991 e em 2003. Reveses duros, mas que não o fizeram esmorecer.
Ele ainda treina duas vezes por dia ao lado de garotos 20 anos mais jovens. A energia, explica, vem da transformação que conseguiu promover.
"Literalmente, eu rebolo para viver. E, quando vejo essa molecada marchando em paz, quando percebo que construí um legado, fico com vontade de ir além. Não é hora de parar."


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