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Brasil, África
Quilombo no sertão pernambucano, Conceição das Crioulas torce pela seleção de Parreira, sofre por Gana e preserva a história do país
XICO SÁ
COLUNISTA DA FOLHA,
EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS (PE)
Amigo torcedor, amigo secador, pouco antes do início do jogo, um lamento negro, como
um blues arrastado no deserto
poeirento, reverberava nesta
vila africana do meio do sertão.
Francisco de Assis de Oliveira,
24, trabalhador da roça, não se
agüentava na camiseta estampada com Ronaldinho e Robinho: "Que pena ter logo o Brasil
pela frente... Fico com o coração partido. Até agora torci pelos africanos, sempre roubados,
desde o primeiro apito".
As afinidades com o futebol
da África nesta aldeia formada
por uma grande maioria negra
e uma minoria indígena não
são apenas capricho da arte de
secar os "grandes" da Copa.
Comunidade quilombola das
mais engajadas, Conceição das
Crioulas, distrito do município
de Salgueiro (PE), a 570 km do
Recife, viu a partida de ontem
se reconhecendo nos traços e
gestos dos atletas de Gana, de
onde vieram parte dos escravos
brasileiros que deram origem a
povoados como este.
"Estamos todos lá, é o time
da vila", diz Oliveira. E, para cada ganês perfilado durante o hino, ele grita um nome de um
amigo que assiste à peleja ao
seu lado, ali no Bar do Anselmo.
Gol do Brasil. Oliveira, coração partido, vibra, mas nem
tanto quanto os amigos. Minutos depois, falta para Gana. A
bola passa por cima da trave de
Dida. Antonio Dionísio, 31, vulgo Shaolin, se trai ao fazer o
gesto de quem adoraria que a
pelota entrasse lá onde o carcará faz o ninho, para citar a ave
símbolo da região. "Ah, é que dá
raiva esse time do Parreira",
desculpa-se com a platéia.
Anselmo pula o balcão e volta
com a cachaça. "Rapaz, amanhã
tem jogo da gente", diz Toinho,
19, zagueiro do time da vila,
tentando conter as doses dos
atletas locais. Não consegue.
Toma uma também. O nervosismo, esse Parreira, sabe?, acaba com os nossos fígados.
Haja calor. Durante boa parte do jogo, o bar fica com as portas fechadas, para melhorar a
imagem da pequena TV. Oliveira, torcendo cordialmente pelo
Brasil, manda o seu panfleto na
lata: "Se fosse a final, não teria
perdão, eu seria Gana, o sangue
dos meus antepassados...".
Intervalo e vemos as mulheres, essas bravas, como Alzira,
mestra da culinária crioula, como Generosa, cuja profissão
veio com o batismo, como diz
toda a turma do Bar do Anselmo... Como as lindas anônimas
naquele ceuzão semiárido.
Em Conceição das Crioulas,
elas lideram há cerca de 200
anos, quando seis escravas aqui
chegaram. O plantio do algodão, cultura africana mantida
até hoje, rendeu ao grupo a
aquisição dos 17 mil hectares
que hoje formam a comunidade quilombola. Em 2000, o governo federal reconheceu o direito dos negros às terras.
A bola rola. Segundo tempo.
Na vizinhança do bar onde Oliveira e a sua turma se espremem no chão, alguns senhores,
sentados na calçada, ouvem o
jogo pelo rádio e conversam,
como se nada do que chegasse
da Alemanha naquela hora, via
parabólica, fosse importante.
"A gente até dá uma olhada nos
jogos vez por outra, mas sem
essa coisa toda, sem sofrer, sem
chororô e sem alegria besta",
esnoba a pátria em chuteiras
Antonio Francisco de Oliveira,
da Associação Quilombola de
Conceição das Crioulas.
Os homens conversam na
lentidão daquele deserto. Os
cães, secos, dormem aos seus
pés um sono que parece de pedra. Os homens conversam e
tangem um porco que se diverte com um sabugo de milho,
conversam e dizem um "xô, galinha" para a ave que bica a ferida na perna do menino. Bola
com Juninho, avança o escrete,
o Brasil ali é um país que se reconhece no espelho da África.
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