São Paulo, quarta-feira, 28 de junho de 2006

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Brasil, África

Quilombo no sertão pernambucano, Conceição das Crioulas torce pela seleção de Parreira, sofre por Gana e preserva a história do país

XICO SÁ
COLUNISTA DA FOLHA,
EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS (PE)


Amigo torcedor, amigo secador, pouco antes do início do jogo, um lamento negro, como um blues arrastado no deserto poeirento, reverberava nesta vila africana do meio do sertão. Francisco de Assis de Oliveira, 24, trabalhador da roça, não se agüentava na camiseta estampada com Ronaldinho e Robinho: "Que pena ter logo o Brasil pela frente... Fico com o coração partido. Até agora torci pelos africanos, sempre roubados, desde o primeiro apito".
As afinidades com o futebol da África nesta aldeia formada por uma grande maioria negra e uma minoria indígena não são apenas capricho da arte de secar os "grandes" da Copa.
Comunidade quilombola das mais engajadas, Conceição das Crioulas, distrito do município de Salgueiro (PE), a 570 km do Recife, viu a partida de ontem se reconhecendo nos traços e gestos dos atletas de Gana, de onde vieram parte dos escravos brasileiros que deram origem a povoados como este.
"Estamos todos lá, é o time da vila", diz Oliveira. E, para cada ganês perfilado durante o hino, ele grita um nome de um amigo que assiste à peleja ao seu lado, ali no Bar do Anselmo.
Gol do Brasil. Oliveira, coração partido, vibra, mas nem tanto quanto os amigos. Minutos depois, falta para Gana. A bola passa por cima da trave de Dida. Antonio Dionísio, 31, vulgo Shaolin, se trai ao fazer o gesto de quem adoraria que a pelota entrasse lá onde o carcará faz o ninho, para citar a ave símbolo da região. "Ah, é que dá raiva esse time do Parreira", desculpa-se com a platéia.
Anselmo pula o balcão e volta com a cachaça. "Rapaz, amanhã tem jogo da gente", diz Toinho, 19, zagueiro do time da vila, tentando conter as doses dos atletas locais. Não consegue. Toma uma também. O nervosismo, esse Parreira, sabe?, acaba com os nossos fígados.
Haja calor. Durante boa parte do jogo, o bar fica com as portas fechadas, para melhorar a imagem da pequena TV. Oliveira, torcendo cordialmente pelo Brasil, manda o seu panfleto na lata: "Se fosse a final, não teria perdão, eu seria Gana, o sangue dos meus antepassados...".
Intervalo e vemos as mulheres, essas bravas, como Alzira, mestra da culinária crioula, como Generosa, cuja profissão veio com o batismo, como diz toda a turma do Bar do Anselmo... Como as lindas anônimas naquele ceuzão semiárido.
Em Conceição das Crioulas, elas lideram há cerca de 200 anos, quando seis escravas aqui chegaram. O plantio do algodão, cultura africana mantida até hoje, rendeu ao grupo a aquisição dos 17 mil hectares que hoje formam a comunidade quilombola. Em 2000, o governo federal reconheceu o direito dos negros às terras.
A bola rola. Segundo tempo. Na vizinhança do bar onde Oliveira e a sua turma se espremem no chão, alguns senhores, sentados na calçada, ouvem o jogo pelo rádio e conversam, como se nada do que chegasse da Alemanha naquela hora, via parabólica, fosse importante. "A gente até dá uma olhada nos jogos vez por outra, mas sem essa coisa toda, sem sofrer, sem chororô e sem alegria besta", esnoba a pátria em chuteiras Antonio Francisco de Oliveira, da Associação Quilombola de Conceição das Crioulas.
Os homens conversam na lentidão daquele deserto. Os cães, secos, dormem aos seus pés um sono que parece de pedra. Os homens conversam e tangem um porco que se diverte com um sabugo de milho, conversam e dizem um "xô, galinha" para a ave que bica a ferida na perna do menino. Bola com Juninho, avança o escrete, o Brasil ali é um país que se reconhece no espelho da África.


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