São Paulo, terça-feira, 28 de dezembro de 2004

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BASQUETE

Penso, logo existo

MELCHIADES FILHO
EDITOR DE ESPORTE

Embora bebessem chá gelado, limonada, um refresco desse tipo, Mike Dunleavy se sentia levemente embriagado. Os dois caminhavam descalços pela praia particular. Jogavam conversa fora. Admiravam o oceano. Pareciam amigos do peito.
Naquela tarde na Califórnia, tudo corria conforme o planejado pelo treinador novato, que, ao mesmo tempo assombrado e extasiado com a perspectiva de assumir o comando do mais glamouroso clube da NBA, queria quebrar o gelo, tentava se aproximar da grande estrela do time.
Entre uma amenidade e outra, Dunleavy fazia uma reverência profissional ao anfitrião. Perguntou o que ele achava que funcionava na equipe e o que ele achava que não funcionava. Pediu conselhos táticos. Prometeu cumplicidade no dia-a-dia de trabalho.
Ao final do encontro, o técnico abriu a pasta e sacou um calhamaço, encadernado com capricho. "Este é o "playbook" do time para o campeonato. Ele explica o sistema de jogo e tem todas as jogadas que eu desenhei, que eu desejo implantar. Achei que você gostaria de recebê-lo antes dos colegas, de estudá-lo em primeira mão. É um gesto simples, que gostaria que simbolizasse o início de nossa amizade."
Magic Johnson pegou o embrulho. Sorriu para o convidado o mesmo sorriso marcante que, junto com os passes mirabolantes e as vitórias memoráveis, construiu sua reputação por todo o planeta. E, sem nem folheá-lo, arremessou o manual com toda a força para o mar. O armador do Los Angeles Lakers então apontou o dedo para a cabeça e explicou: "O "playbook" sou eu".
A história, que o simpático treinador (hoje no LA Clippers) me contou há alguns anos em Nova York, é do verão de 1990, mas serve de parábola para o campeonato em curso da liga americana, uma edição que resgatou o basquete rápido, prazeroso, que recompensa o livre pensamento.
Alguns vêem influência da Olimpíada, que testemunhou o sucesso de times pouco mecânicos. Uns dizem que os donos das franquias querem que o público se divirta mais com o jogo, mesmo que isso custe a vitória. Outros atribuem à evolução física dos atletas, cada vez mais velozes.
Tanto faz. Importa, sim, é que, até o fim de semana, oito equipes ostentavam médias superiores a cem pontos por jogo. Na temporada anterior, foram só duas.
Na vanguarda do movimento, e no topo da classificação (23v e 3d), aparece o Phoenix Suns, pouco cotado antes do torneio, mas que surpreende, solidário e mortal nos contra-ataques.
É o único time, por exemplo, com dois jogadores registrando duplo-duplos (dez ou mais em duas estatísticas), casos de Steve Nash e Shawn Marion. Ainda assim, é um terceiro, Amaré Stoudemire, quem colhe mais elogios.
"Não entendo o sucesso desses caras. Eles parecem nem ter um manual de jogadas", inconformava-se após a derrota o ala Darius Miles (Portland), jovem concebido no mundo das pranchetas e, por isso, alheio a uma dimensão que o esporte felizmente redescobriu nesta virada de ano.

Prancheta 1
Há 20 anos, os times da NBA anotavam 110,8 pontos por jogo. Número que o atual campeão (Detroit) não alcançou nenhuma vez.

Prancheta 2
O ataque do Phoenix, com a ajuda do brasileiro Leandrinho, mete hoje 109 pontos por partida, 15 a mais do que em 2003/04.

Prancheta 3
A frase é de Eddie Johnson, arremessador que brilhou no ultraofensivo Phoenix nos anos 80 (média de 113 pontos) e advogado do jogo fluido, de contra-ataques: "A cadeira que fica à beira da quadra tem um propósito. O técnico só devia se levantar dela para reclamar da arbitragem e, de vez em quando, reativar a circulação das pernas."

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