São Paulo, quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Quem sou eu?

Jefferson Coppola/Folha Imagem
O quarto que abrigou Leônidas nos últimos dez anos e que nesta semana ainda guardava um pouco da memória de sua carreira


Roteiro de curta-metragem revolve delírios e refaz trajetória daquele que vivia atormentado por sua identidade, mas se via maior que Pelé

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Por uma grande coincidência, uns dez dias atrás fui convidado a escrever um roteiro de longa-metragem sobre Leônidas da Silva. O primeiro passo seria visitá-lo. Como ele estava doente, deixei para a semana seguinte. Infelizmente, não houve semana seguinte. Leônidas morreu. Agora só estará vivo nas memórias, reportagens, filmes e livros sobre ele.
Por conta disso, e como exercício para o trabalho no longa, fiz este roteiro de curta-metragem:
 
Cena 1: Numa clínica de repouso, colocam um velho negro em sua cadeira de rodas. Ele tem o olhar perdido, como se não estivesse ali. Algumas enfermeiras enchem bolas de ar vermelhas. As paredes estão cheias de retratos. São fotos em que se vê um jogador de futebol com bigodinho fino e sorriso muito branco. Uma carinhosa mulher se aproxima dele, segura seu rosto com as mãos e pergunta: "Você sabe quem você é?". O velho não responde nada, apenas olha para o relógio da mulher com atenção.

Cena 2: Close num relógio. A câmera abre e vemos que estamos numa repartição pública dos anos 70. É o último dia de trabalho de um dos funcionários e ele recebe um relógio como presente. Impecável em seu terno, o homem, ali pelos seus 70 anos, está emocionado e chega às lágrimas. Com dificuldade, controla-se e diz: "Eu sou um funcionário público".

Cena 3: Numa cabine de rádio dos anos 60 estão o narrador Fiori Giglioti e um comentarista. Fiori apresenta seu companheiro como "O maior craque de ontem e o maior comentarista de hoje". Porém, antes que ele coloque os fones de ouvido, um jovem se aproxima e puxa conversa. O comentarista o atende com paciência, sorri e dá um autógrafo. Então o fã, por descuido ou maldade, faz a pergunta que ele menos gostava de ouvir: "Quem é o melhor jogador da história: o senhor ou o Pelé?". O comentarista franze o rosto e responde secamente: "Eu sou o melhor".

Cena 4: No estádio do Pacaembu, no dia 13 de novembro de 1943, há um jogo dramático. Palmeiras e São Paulo se enfrentam. O empate daria o título para o São Paulo, clube que nunca havia conquistado um Campeonato Paulista. O jogo é difícil, truncado, dramático, mas segue em 0 a 0. Quando o juiz finalmente apita o término da partida, um dos jogadores, um veterano de 30 anos, dado por muitos como acabado para o futebol, levanta os braços e grita: "Eu sou campeão!".

Cena 5: Num tribunal de Justiça militar, um homem é acusado por ter falsificado sua dispensa do serviço militar. Ele é o homem mais famoso do país e acaba condenado a oito meses de prisão num quartel. De cabeça baixa, ele murmura: "Eu sou culpado".

Cena 6: Copa da França. Brasil e Polônia fazem um jogo dramático. A seleção havia terminado o primeiro tempo vencendo folgadamente por 3 a 1, mas a Polônia reagiu e chegou aos 4 a 4. Debaixo de chuva, começa a prorrogação. Mais um gol para cada lado e o equilíbrio persiste: 5 a 5. O Brasil ataca perigosamente. Na jogada, o avante perde a chuteira. Então o goleiro repõe mal a bola e ela acaba voltando para o jogador descalço, que, num sem-pulo, faz seu quarto gol naquela partida e decreta a vitória brasileira. Ele olha para o céu e, com rosto molhado de lágrimas e chuva, diz: "Eu sou demais!".

Cena 7: Anos 30. Um jovem craque do Flamengo desfila pela avenida Atlântica, em Copacabana, no seu carro novinho em folha. Era o prêmio que ele havia recebido como "O jogador mais popular do Brasil", num concurso realizado pelos cigarros Magnólia. Ele dá uma buzinada para uma bela moça que passa pela calçada e cantarola: "Eu sou aquele Pierrot, que te abraçou, que te beijou, meu amor...".

Cena 8: Um garoto de 18 anos está na sala do presidente do Bonsucesso. É seu primeiro contrato de futebol. O presidente pensa que ele irá aceitar um salário qualquer, mas o rapaz pede 600 mil réis por mês, dois ternos, dois pares de sapato e um conjunto de paletó listado com calça de flanela. O cartola sabe que está diante de um craque e não vacila: aceita as condições na hora. Enquanto assina o contrato, o rapaz pensa: "Eu sou um jogador de futebol".

Cena 9: 1925. Num campinho de terra batida de São Cristóvão, um menino de 12 anos se prepara para receber um cruzamento na área do time rival. Porém a bola, feita de meias vermelhas, vem torta, atrás do jogador. É então que o moleque inventa um novo lance. Fica de costas para o gol, joga as pernas para o ar, pedala numa bicicleta invisível e manda a bola vermelha para o gol.

Cena 10: Na clínica de repouso, todos ficam em volta do velho negro e cantam "Parabéns a você". Então uma das bolas vermelhas se solta do teto e cai no seu colo. Ele olha para ela e, sabe-se lá porquê, diz: "Eu sou Leônidas".


Texto Anterior: Painel FC
Próximo Texto: Alzheimer atacou memória do "Diamante"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.