São Paulo, sexta, 29 de maio de 1998

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O mundo é dos carecas (de alguns carecas)

JOSÉ HENRIQUE MARIANTE
da Reportagem Local

A poucos dias do primeiro amistoso na Europa, o noticiário orbita entre a tragédia anunciada e as demonstrações ufanistas de praxe. E a figura de um garoto leucêmico, por mais triste que possa parecer, torna-se automaticamente reflexo de saúde, força e sucesso no encontro com o ídolo, careca por opção, Ronaldinho.
No dia seguinte, o mesmo Ronaldinho é confrontado com uma enquete, feita supostamente em Hollywood, onde as beldades decretaram o que a marchinha de carnaval já dizia há décadas.
E, se é dos carecas que elas gostam mais, seria razoável supor que os modelos de propaganda de margarina passarão a raspar o cabelo.
Mas, claro, para ser careca e bonito é preciso muito mais do que um crânio bem desenhado. É preciso representar algo, como no caso de Ronaldinho.
Não apenas o jogador veloz e eficaz, que brilha sobre qualquer gramado do planeta, mas também o sujeito bem-sucedido, que anda de Ferrari e namora com uma gostosa.
Como diz o comercial de refrigerante que o atacante protagoniza a bordo do carro vermelho e da loura Suzuna Werner, "brasileiro gosta de carro, futebol e mulher". Ronaldinho tem tudo isso de sobra.
E, por essa razão, é ídolo, para boa parte do público.
A tese pode até soar inverossímil aos que acompanham o futebol como um esporte. Esses, porém, não sustentariam recordes de audiência e centenas de milhões em patrocínio.
Basta acompanhar a exploração de sua imagem nos últimos dois anos. No primeiro comercial, o menos apelativo, aliás, aparecia como boleiro em ação. Logo foi transformado em nu artístico, cristo redentor e chefe de escoteiros mamíferos, para, finalmente, incorporar o personagem-padrão do comercial de TV, o cara bem-sucedido, que tem carro, mulher e tudo mais.
Mais bem conceituado jogador da atualidade, Ronaldinho é apenas o extrato de um sistema altamente profissional e milionário em que o esporte é, ao mesmo tempo, razão de tudo e mero detalhe. Algo relativamente novo, impensável nos tempos em que a relação pecuniária no futebol se desenvolvia basicamente após o jogo, no pagamento do bicho.
A verdade é que, se vivesse agora, Garrincha estaria provavelmente vendendo leite para criancinhas também. E teria um grupo de empresários coibindo sua boêmia -pelo menos aquela que atrapalhasse suas pernas em campo.
E seria admirado como os jogadores são agora, com um misto de adoração e inveja, não apenas pelo esporte, mas pela imagem de sucesso que exalam de seus ternos caros e cabelos raspados.
Como aconteceu no vôo que trouxe Rivaldo e Giovanni para São Paulo, há algumas semanas, onde, na classe econômica, a presença da dupla do Barcelona era o assunto.
"Saiu da favela, é semi-analfabeto e hoje tem uma Cherokee, uma BMW e viaja de primeira classe. E, nós, aqui, apertados no porão."
Desdenhoso, o comentário partiu do mesmo sujeito que, ao final da viagem, já na esteira de bagagem, aproveitou a oportunidade para pedir uma foto junto aos jogadores.
Atendido, sorriu ao abraçar Rivaldo. Concorde ou não, estava rendido ao ídolo.



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