São Paulo, segunda, 1 de março de 1999

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Os caipiras eletrônicos de Manchester

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

"Era janeiro em 1963/ E Johnny chegou em casa/ Com um presente para mim." São os primeiros versos de "1963", música não muito conhecida do New Order, quatro ingleses pelo menos 20 anos à frente do seu tempo.
"Feliz Ano Novo!", diz, sem muito ânimo, aquele quarentão loiro com jeito de moleque, camisa azul-clara para fora da calça e barriga saliente. Ele é Bernard Sumner, ex-Bernard Albrecht, cantor e guitarrista do New Order, o homem que teve a colossal responsabilidade de levar à frente uma banda que se chamava Joy Division e chegou à beira do abismo com o suicídio por enforcamento de seu líder, Ian Curtis, em 1980.
Estamos no Alexandra Palace, que é o que o nome indica, um palácio gigantesco na periferia norte de Londres. Supershow de Ano Novo, madrugada de 31 de dezembro de 1998 para 1º de janeiro de 1999, e as atrações parecem saídas de um sonho: o Lionrock traz de Manchester sua eletrônica festeira, o venerado Underworld ("lager, lager, lager") apresenta finalmente as músicas do novo disco, os gurus digitais do Chemical Brothers fazem uma rara apresentação como DJs.
Mas o grande nome da noite acaba sendo o veteraníssimo New Order. Os quatro (Sumner mais Peter Hook no baixo, Gillian Gilbert nos teclados e Stephen Morris na bateria) tocam afiados, parecem estar ensaiando juntos, obsessivamente, há meses.
Abrem o show com a emocionante "Ceremony" ("Os céus sabem que tem de ser desta vez!"), tocam todos os clássicos, dão uma colher para o inútil Bez (figura lendária do rock britânico que ficava só dançando no palco nos Happy Mondays), brindam o público com versão inesquecível de "Love Will Tear Us Apart", dos tempos de Joy Division, clássico insuperável do pós-punk.
Não é preciso ser uma enciclopédia ambulante de pop para saber que a música eletrônica de hoje deve tudo e mais um pouco ao New Order.
"1963", como tantas canções deles, tem aquela capacidade fugaz de parecer o som mais urgente possível para uma época. Aquilo que nos faz ouvir só três acordes e dizer, satisfeitos: "É isso!".
E "1963" não é tudo. O New Order tem uma quantidade única de singles que marcaram seu tempo. "Blue Monday", "Temptation", "Thieves Like Us", "True Faith", "Bizarre Love Triangle", "Perfect Kiss"... A lista é longa.
Tudo isso feito por quatro caipiras da industrial Manchester, três moleques e uma menina que só tinham em comum um passado lúgubre e extensas coleções de discos. Não sabiam que estavam mudando o mundo, mas foi exatamente isso o que fizeram.
Claro que boa parte do material do New Order soa datado, mas unicamente por questões técnicas, não estéticas. É que a música eletrônica depende fundamentalmente de equipamentos, e tudo isso avançou muito de dez anos para cá. Mas, como canções pop, continuam insuperáveis.
"1963" é também o ano em que nasci. E o "presente" para Johnny era um revólver cheio de balas.


Álvaro Pereira Júnior, 35, é chefe de Redação do "Fantástico" em São Paulo



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